quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Fábrica do Paleão - Soure

Esta reportagem foi uma dose "p'ra leão"... não só pela fotogenia do local,  que nos deu um pleno êxtase com um cem número de oportunidades fotográficas, como pela sua história, que nos fez regredir ao auge de um Portugal industrial, e ainda pela a agradável companhia que tive o privilégio de levar...
Foi na sequência da pesquisa sobre a Efanor - Fábrica dos Carrinhos, que me deparei com este apetecível cenário que era uma extensão dessa unidade industrial... pelos contactos feitos com a Fundação Belmiro de Azevedo, proporcionou-se uma visita guiada em exclusivo para o Ruin'Arte... foi um dos mais altos momentos deste projecto.
A fábrica encontra-se devoluta e é tenazmente guardada por uma matilha de cães de guarda, pelo que não aconselho a visita sem a devida autorização e companhia credenciada e oficial... se tiverem amor ao fundo das calças...
Desta velha unidade industrial, restam além dos devolutos espaços e infindáveis memórias, uma bem preservada central energética que foi outrora o coração de um elaborado sistema de produção, que por si só constitui um valioso espólio museológico.
Embora a laboração tenha aqui cessado, os terrenos da Fábrica do Paleão estão a ser explorados com uma intensa cultura de kiwis, rentabilizando uma parte desta propriedade... o que me leva a sugerir a adaptação desta enorme estrutura numa grande estufa...
O fornecimento de água está garantido pelo rio e o espaço além de generoso é suficientemente iluminado, o que é fundamental para o crescimento de qualquer planta.
Este projecto, não só preservaria a fábrica, como dinamizaria a economia da região, constituiria novamente os muito desejados empregos, que tanto faltam, e seria mais um rendimento para a Sonae, que é o maior gerador financeiro e empregador do País.
Aqui vos deixo uma viagem pela história e por este local, devidamente documentado por um autor de craveira, e gentilmente cedido pela fundação supra-citada, a quem devo um grande OBRIGADO, tal como a todos os que intervieram nesta memorável sessão...
A Natureza criou sítios especiais que, por qualquer magia dos elementos, gerou paisagens admiráveis. Em Paleão, pequena aldeia do concelho de Soure, a obra da Natureza tem um cunho próprio e não é desde logo acessível. Esconde-se de olhos estranhos. Oculta-se por detrás das construções regulares. 
 
Não é acessível ao forasteiro que a desconhece ou que não teve a possibilidade de penetrar no seu espaço, seguindo as vias transitáveis. Também não é dominada por quem convive quotidianamente com ela. Nem sequer tem a forma de uma maravilha do mundo, nem é um fenómeno cultural de valor excepcional.
 
A Natureza construiu ali campos rasos, rodeados de contrafortes rochosos das serras vizinhas, entre as quais a de Sicó, que os envolvem a nascente, numa coroa de altitudes médias. Só que esses campos foram talhados pelas abundantes águas que correndo dos riachos e ribeiras nunca chegaram, por incrível que pareça, a formar caudal nem grande rio. 
 
Antes pelo contrário, foram linhas de água convivendo com suas irmãs gémeas, trilhando cada qual o seu caminho pelos campos talhados de eras geológicas, todas à procura de uma foz onde engrossassem e fossem unas até ao oceano. 
 
Esta particularidade foi aproveitada pelo trabalho dos antigos "arquitectos" de moinhos e azenhas, que logo descobriram um manancial de energia para erguer açudes, acéquias, levadas ou canais e assim mover seus engenhos de farinha. Um dia, houve quem chegasse a pensar que se poderia criar um canal que pusesse em comunicação a Figueira da Foz com Soure.
 
Numa rápida visão, reconhece se ali um conjunto de moinhos de várias pedras, hoje em menor número do que antes da revolução industrial. Localizavam-se na levada do Orão e no Rio Anços. Fazendo trabalhar em 1885, trinta e cinco pares de pedras movidas por azenhas e rodízios, para além de um grande lagar hidráulico com quatro varas e várias noras. 
 
Junto a Soure essas abundantes águas também eram aproveitadas em vários moinhos e azenhas, aspecto que não passava despercebido a quem via no trabalho industrial uma forma de desenvolvimento.
 
Mas, para observar toda essa riqueza técnica e económica que fizeram dos moinhos de Soure e de Paleão um mundo a parte na molinologia portuguesa, e necessário despender algum esforço. 
 
Procurá-los por entre os campos rasgados, observar-lhes as características, ouvir o murmurar das águas nos saltos de desnível, respirar o cheiro das farinhas, dominar uma paisagem que, sem deixar de ser um panorama, adquire aqui e acolá o estigma da intervenção da cultura tecnológica. 
 
Ora o moinho não é senão o embrião da fábrica e da indústria moderna. Esta intuição do lugar e das suas vantagens industriais só se materializou nos meados do séc. XIX. Até então as terras eram de pão, de hortas e de frutos, para alimento e mercado das comunidades rurais daquela vasta região de grandes tradições agrícolas e cujos ritmos laborais se prendem ao fundo cultural do Portugal andaluz. 
 
O rio de Orão, antes de lançar as suas águas no Anços, recebia as nascentes a montante que engrossavam a corrente fluvial. No rio Anços foi construída uma represa de pedra, o açude do Lourenço, que permitia captar as águas para a irrigação dos terrenos agrícolas, manancial aquífero sujeito ao regime colectivo ancestral de aproveitamento dos proprietários daqueles terrenos. 
Depois da junção dos dois rios, o açude do Juncal separa a Natureza da obra do Homem A grande vala velha, chamada de Entre-Águas, rasgada pelos moleiros e agricultores de outras eras, servia quatro engenhos na margem direita e cinco noras de irrigação, três na margem esquerda e duas na direita, já próximas dos Moinhos do Paleão, o das doze pedras. 
 
Um novo açude - da Azenha - abastecia a regadeira antiga. Depois de servir os rodízios dos Moinhos do Paleão, a vala velha descarregava e ainda desagua no Rio Anços e nele se apoia para continuar para outras paragens até atingir os Moinhos Novos, não sem que, no Rio Anços, se erguesse um novo açude - o da Serrada - por sua vez servindo nova azenha Toponímia de sítios e de regas, os nomes falavam de aguas e de propriedades cerradas, onde os representantes das fainas agrícolas manifestavam uma organização comunitária de usufruto dos caudais. Alagoa, Canal da Caniceira, Cancelas, Cerrados, Conqueiros, Pousios são os sítios em que a agua era a fonte de riqueza, para os moinhos e para as diferentes regueiras que por ali havia e que faziam perpetuar os hábitos agrícolas ancestrais e as motivações rotineiras dos proprietários agrícolas e rendeiros. 
 
A geografia neste micro-espaço tem muito a retirar da observação das coisas e dos homens, um dia varridos por um vendaval diferente, quando se pensou aderir ao fenómeno da industrialização, que na Europa fazia de campos, cidades, de riachos, uns tantos canais e de abegoarias, fabricas mecanizadas.
 
Em 1884 era vice-presidente da Câmara de Soure o advogado Evaristo Maria das Neves Ferreira de Carvalho. Conhecia naturalmente aquela região onde se afeiçoara desde criança e observara o caudal das suas aguas, facto que o levou a reconhecer a sua importância industrial. 
 
A sua oposição à rotina e a "descrença pirrónica" que grassava na região de Soure, numa altura em que a linha de caminho de ferro do Norte escolhera a povoação templária para se implantar, deu-lhe energia para lutar contra o desalento.
 
Nessa altura o espírito de empresa despontara naquele concelho, com a exploração dos jazigos de gesso de Alencarce, a 4 km de Soure e na Amieira, onde se estabeleceram umas termas para engarrafar aguas de grande riqueza e qualidade.
 
 O movimento industrial chegava a Soure Mas necessitava de um grande impulso de inteligência, resolvido por Evaristo de Carvalho, a partir do conhecimento energético das aguas da região Soure - Paleão Com esse objectivo, estimula e patrocina os estudos hidráulicos na área dos moinhos no Paleão, de modo a sustentar o estabelecimento de uma grande empresa industrial As plantas e os estudos foram entregues ao engenheiro mecânico francês, Scipião Bouvret.
 
O projecto primitivo previa a localização industrial a meio de uma pequena colina em S. Mateus, perto de Paleão. A ideia inicial pressupunha a construção de um canal, um quilómetro acima dos moinhos do Juncal Esta primeira opção foi abandonada por razões até agora desconhecidas. 
 
Scipião Bouvret, do qual pouco se sabe. também se viu afastado do projecto ao qual dera corpo técnico e a nova implantação aproximou-se do espaço, onde se implantou uma das mais importantes fábricas de algodões do centro do país. Diversas condições foram consideradas na análise do projecto industrial dos empresários de Soure Para além da riqueza da força motriz hidráulica, a situação do estabelecimento beneficiava da higiene, da economia, dos recursos naturais e das acessibilidades. 
 
A paisagem era rural e o ambiente saudável e desafogado, "recebendo ar e luz de todos os lados". Os salários dos trabalhadores rurais da região eram baixos, permitindo uma economia de capital variável, aspecto não displicente se atendermos às características salariais do trabalho fabril nos grandes centros industriais. Por outro lado, o operário da nova fábrica de Paleão poderia conjugar as suas actividades laborais com a faina da terra, aspecto que foi salientado por Amado Mendes. 
 
A nível dos recursos naturais, atendendo à necessidade de força motriz a vapor poder-se-ia utilizar os jazigos de linhite do concelho de Soure ou mesmo os de carvão de Buarcos, como aliás veio a acontecer Finalmente, o estabelecimento industrial ficava no centro de uma região de importantes localidades e servido de caminho de ferro, de estradas municipais e de ligação fluvial à Figueira da Foz. 
 
Entre as opções industriais da moagem, do papel, do fabrico de linho e do algodão, os promotores da fábrica do Paleão investiram no têxtil algodoeiro, em fase crescente no Pais, muito embora a matéria-prima fosse importada e o escoamento dos produtos pudesse esbarrar com a concorrência nacional e internacional. 
 
Certas necessidades do mercado nacional, como o fio n.º 30 e os panos de algodão, eram motivos mais que suficientes para justificarem essa opção. No entanto, para os lucros serem razoáveis era necessário que a fábrica se erguesse no perfeito conhecimento das inovações técnicas mais modernas e na presunção da construção de edifícios de raiz, segundo os melhores modelos estrangeiros. 
 
Com a capacidade motora de 175 C/V o engenheiro francês admitia que podia pôr em funcionamento 10.000 fusos e 200 teares, reunidos numa área coberta de 4 200 m2. Como o espaço necessário para criar pátios, jardim e habitação do director era de 4 800 m2 a instalação fabril atingiria os 9.000 m2, numa media de 6$ooo reis por m2 de área industrial. 
 
Bouvret organiza o caderno de encargos da fábrica, construída por uma companhia fabril, indicando o valor do material, das edificações (450 contos) e do custo de fabricação, atendendo aos quadros técnicos, à fiação, à tecelagem e à tinturaria (35 contos). Com um investimento global de 485 contos pensava-se no eldorado industrial. Os custos de produção de 400 toneladas de algodão bruto eram estimados em 207 contos e quinhentos mil reis. 
 
Com esse algodão podia produzir-se 1.440.000 metros de tecido o que renderia 302,4 contos. Os industriais poderiam ficar satisfeitos, pois o rendimento liquido rondava os 95 contos/ano e o fundo de reserva, depois dos dividendos distribuídos, era de 14,9 contos. 
 
Numa perspectiva minimalista, atendendo à diminuição de C/V durante a estiagem, mesmo assim seria possível distribuir 10 a 13% de lucros aos accionistas, num montante de 60,8 contos. O modelo fabril assentaria numa fábrica exemplar com boa iluminação natural e artificial, pensada globalmente em todos os aspectos mesmo os do foro social, prevendo-se desde o inicio habitações para operários. 
 
A política da economia de salários podia ser assim colmatada, pois o empresário não tinha como objectivo "a exploração do operário", apenas aproveitava as circunstâncias "de fácil intuição, perfeitamente conhecidas" da diferença de salários entre a Capital e a vila de Soure. 
 
Bouvret chegou a desenhar a planta das instalações segundo as modernas regras de implantação das fábricas têxteis, adoptando uma racionalização do espaço em área quadrada regular de um piso, com cobertura em shed assenta sobre asnas e colunas de ferro e iluminação natural, a Norte.
 
Na posse deste projecto foi fácil aos impulsionadores da industrialização de Soure fazerem vingar a criação de uma companhia, cujos estatutos se encontram concluídos em 27 de Junho de 1885.
 
A Companhia Fabril e Industrial de Soure, SARL, com sede em Lisboa, organiza-se para aproveitar a "força motriz hidráulica dos rios Anços e d'Orão, principalmente para montar uma fábrica de artefactos de algodão e matérias similares, podendo também aproveitar a mesma força motriz para qualquer outra indústria que a direcção julgar conveniente".
 
Os accionistas irão beneficiar de uma cedência gratuita do principal impulsionador - Evaristo Carvalho - de todos os direitos adquiridos dos escrituras de promessa de venda com proprietários da região e de Montemor-o-Velho sobre os direitos das águas. 
 
Essa cedência garantiu-lhe o lugar de fundador, com dez títulos da Companhia e um pagamento de 10 contos de réis. Um dos mais importantes factos deste período de arranque foi a mudança de localização da fábrica. 
 
O projecto de Bouvret previa a implantação junto a estrada municipal de 1ª classe de Soure a Ancião, nas circunvizinhanças do Casal de S. Mateus, onde se ergue uma interessante ermida medieval, mesmo em frente dos Casais da Borda do Rio. 
 
Em 8 de Dezembro de 1885, Bouvret acompanha o levantamento topográfico do conductor de obras públicas, Justino da Silva Taveira, delimitando se o terreno junto à estrada municipal e anotando em francês as legendas da planta escritas em português. 
 
Algumas das escrituras de promessa de compra e venda, celebradas por Evaristo de Carvalho, entre 1884 e 1885, pressupunham essa opção bastante assimilada a da localização em São Mateus.
 
No entanto, as obras de construção efectuaram-se para o Sul de Paleão, nas proximidades dos Moinhos daquele lugar na margem direita da nova vala para a irrigação, que corre ali quase paralela ao Rio Anços.
O novo canal ou vala foi rasgado na vala velha de Entre-Águas, com um canal de descarga no seu troço Norte. A alteração de localização motivou o desvio das linhas aquíferas por parte da Companhia Fabril, situação que motivou uma importante escritura com os trinta e quatro proprietários das aguas e dos terrenos circunvizinhos da futura levada, situação com incidências no canal de Entre-Águas e na regueira de propriedade comum. 
 
A celebração do contrato determinou a obrigação dos directores construírem uma ponte de alvenaria, por cima do canal e uma regueira nova de pedra e cal, cimentada no seu interior para que as águas corressem ao mesmo nível, do que antigamente. Em contrapartida o curso das águas seria desviado do seu leito habitual para a Levada, no sitio das Cancelas.   
 
Para além destas obrigações houve necessidade de estabelecer escritura entre a Companhia e os proprietários vizinhos. Estabeleceu-se que CJS proprietários agrícolas só autorizavam o desvio acima referido, desde que não fosse elevado o nível das águas de modo a não ficarem prejudicados com a inundação das suas terras, nem deixarem de mover as suas noras pela falta de declive. 
 
Os acordos implicaram também medidas ecológicas avant la lettre, pois as águas industriais não podiam ser misturadas com as das regas ou outros usos públicos ou privados, e a autorização expressa de poderem regar com as águas da levada. 
 
As obrigações foram de colocar duas comportas, na intercessão da levada antiga com o novo canal, cuja regulação ficou assente entre ambas as partes de modo a viabilizar o projecto industrial, sem prejudicar os interesses agrícolas dos proprietários locais.
 
Entretanto desde 21 de Agosto de 1888, que existiam plantas definitivas e orçamentos para o edifício e diversas estimativas para a sua construção Negociações entabuladas com o construtor Francisco Baerlein, representante da firma Baerlein & Cº de Manchester sediado na Rua da Prata, em Lisboa, determinaram a celebração de um contrato com o empreiteiro, em 6 de Setembro de 1888. O acordo estabelecia a montagem global da maquinaria na fábrica, da qual os construtores também eram os empreiteiros civis, de modo a criar uma unidade industrial de primeira ordem.
 
As obras de edificação da fábrica decorreram entre 1888 e 1891, segundo o modelo de Brouvet, no entanto adaptado as novas realidades e modalidades Lideram este processo outros accionistas investidos com os cargos de directores, entre os quais consta ainda o Dr. Evaristo Maria Ferreira de Carvalho, para além de Alexandre Eduardo de Sousa Alvim, do Dr. Francisco Teixeira de Queiroz, de João Lobo Santiago Gouveia e de Mem Rodrigues de Vasconcelos.
 
Não foi encontrado o contrato entre Francisco Baerlein e a Companhia. Todavia deve ser semelhante ao que o empreiteiro assinou em 18 de Agosto do mesmo ano com os repensáveis da Companhia Oriental de Fiação e Tecidos, em Xabregas. Por um lado, Baerlein mandava edificar as instalações industriais segundo os melhores processos da época. Teria de abrir o canal para o funcionamento de uma turbina. 
 
Forneceria igualmente "o machinismo o mais aperfeiçoado para a indústria de fiação e tecelagem de algodão, incluindo a machina a vapor para toda a fábrica e suas respectivas caldeiras".' Todas as condições de perfeição de maquinismo, "aperfeiçoamentos mais recentes" de iluminação, segurança e ventilação outras normas que se encontram no contrato da empresa de Xabregas se reverteram para Soure, uns dias depois, facto que pode ser testemunhado por documentos da Companhia de Soure. Em ambos os casos foram montadas máquinas a vapor de efeitos múltiplos, do sistema coumpond de alta e baixa pressão, prestes a funcionar em 1891.
 
Para a mudança de localização, em 1889, foi necessário proceder a compra de terrenos a vários proprietários dos sítios de Cancelas, de Cunqueiro, da Serrada e da Caniceira, para obras no canal da Fábrica e assentamentos de propriedade e trocar outros bens de raiz já adquiridos pelos que eram necessários, como por exemplo, os terrenos da Ameixoeira. 
 
Quando a Fábrica de Soure foi concluída e inaugurada em meados de 1891, entre os empresários e nos circuitos económicos de Portugal sabia-se que fora "construída com o pensamento de ser uma fabrica modelo, com todos os melhoramentos modernos”. 
 
Todavia, a falta de pagamentos a F. Baerlein e um moroso contencioso com o empreiteiro vieram protelar o inicio da laboração e alterar os projectos ambiciosos dos empresários da Companhia Fabril e Industrial de Soure.
 
Essas modificações ocorreram durante a crise política e económica de 1891, depois do Ultimatum inglês e da crise algodoeira mundial. No panorama industrial português a Fábrica de Fiação e Tecidos de Soure pode considerar-se uma unidade fabril de sucesso, pois ultrapassou uma centúria de existência. 
 
Pertenceu a terceira geração de unidades maquinofactureiras e apesar de alguma perturbação administrativa subsistiu as crises, mantendo a sua presença na paisagem e assumindo-se como património industrial, até que em 1994 foi encerrada definitivamente. 
 
Entre as fábricas algodoeiras foi uma das mais antigas do Baixo Mondego e uma das têxteis mais modelares da região e " área económica" de Coimbra. Ao longo dos cento e três anos de laboração passou por seis períodos administrativos fundamentais, sem contar com o período de construção e instalação (1888-1991). 
 
Inicialmente foi propriedade da Companhia Fabril e Industrial de Soure, empresa que lhe deu existência como unidade fabril e a preparou para a produção algodoeira. Nos estudos sobre a Fabrica de Soure verifica-se uma omissão sobre este curto período.
No entanto, a documentação que se encontra em Tomar é elucidativa do modo como a Fábrica foi minuciosamente pensada para se tornar numa unidade modelar. 
 
Enquanto decorria a sua construção, os directores da Companhia contrataram um escriturário das Minas de S. Domingos, concelho de Mértola, chamado João Zink, para a organização e administração da actividade fabril de Soure João Zink foi encarregado, em Janeiro de 1890, de visitar a Inglaterra para se inteirar do desenvolvimento das fábricas britânicas e "engajar" mestres para as diversas secções fabris. 
 
Visitou também as fábricas de Barcelona, com o mesmo objectivo. Em Abril, já havia contratado pessoal para Soure, mestres em efectivo serviço industrial nos primeiros meses de 1891. Na realidade, em fins de Janeiro desse ano, a fábrica encontrava-se completamente construída, com a instalação dos maquinismos. 
 
Através do livro Diário n.º1, da Companhia de Soure, sabe-se quem eram os técnicos ingleses "engajados": J Parkes, John Lee, P Walter e A Prestwich. Mas nos finais desse mesmo ano, já os quatro teriam regressado por falta de capital e liquidez para o pagamento dos salários. 
 
Por outro lado, consome-se algum carvão, facto que corrobora um inicio de actividade com motor central de energia a vapor. As expectativas dos primitivos fundadores em obterem pessoal operário a partir da população local tinha-se gorado. 
 
Zink havia contratado operários no Porto, pagos para o arranque da produção. A actividade de Zink, reconhecível em todos os aspectos do lançamento do projecto fabril de Soure, grangeou-lhe um lugar à parte na vida fabril da unidade industrial, aspecto que contribuíra para a sua continuação como principal gestor da empresa, depois da crise de 1890-1891.
 
Entre 1885 - data da constituição da Companhia - e 1892 - altura em que se funde com Companhia da Real Fabrica de Fiação de Tomar - aquela sociedade moveu-se entre as dificuldades da concretização do projecto e do arranque da produção e o investimento gigantesco a que foi chamada a materializar. 
 
Por essa razão a própria Companhia não teve uma história linear e os antigos fundadores acabaram por soçobrar ao "império" da fiação de Tomar e da sua marca registada. Há que compreender a ideia de fusão como uma solução para a continuidade do projecto de Soure e como uma resposta à euforia dos accionistas da Companhia da Fábrica de Fiação de Tomar entre os finais da década de 80 e os inícios da década de 90. 
 
A decisão da fusão foi objecto de aprovação em Assembleia Geral da Companhia de Tomar de 4 de Agosto de 1892 é corroborada por uma assembleia conjunta das duas companhias, em 29 desse mesmo mês, sob a direcção do Presidente da Assembleia Geral, Manuel Joaquim Alves Dias, personalidade aceite por ambas.
 
Desde a sua origem a Fábrica de Soure esteve relacionada com o capital lisboeta, mesmo quando se fundiu com a Fábrica de Fiação de Tomar. Todavia, a partir de 1922 o controle da unidade algodoeira de Soure passa para as mãos do capital portuense. De facto, em 1922 e adquirida pelos futuros empresários da Fábrica da Areosa, do Porto, primeiro sob a designação da firma Azevedo & Cª, Lda, a arrendatária de 1917 e, depois da crise económica de 1927 sob o giro da Azevedo, Soares & Ca Lda.
 
As circunstâncias da passagem da propriedade da Fábrica de Soure para a posse dos empresários nortenhos não se encontram totalmente esclarecidas. As rendas continuaram a pagar-se até meados de 1922, mas o corte definitivo com Tomar só se encontra registado a partir de 10 de Janeiro de 1924. 
 
O desaparecimento do último volume da correspondência entre as fábricas impede clareza sobre este assunto, até porque Carlos Santos (e seu filho Luís Delgado dos Santos, nos impedimentos temporários do pai) e ainda, até Janeiro de 1924, o representante da Companhia de Tomar em Soure. 
 
Por outro lado, sabemos que tanto o pai como o filho se encontram ligados aos responsáveis da Azevedo & Cª, Lda, desde os primeiros anos, mantendo-se em actividade no novo período administrativo. Por fim, os directores de Tomar deixam de nomeá-lo como administrador a partir de 4 de Junho de 1921, o que indicia uma mutação na história da empresa de Soure. 
 
Aliás, nos inícios da década de 20 os directores de Tomar solicitam diversos pagamentos a Manuel Pinto de Azevedo, por conta do arrendamento. Finalmente refira-se que o Alvará da empresa Azevedo & Cª, Lda para a exploração de "uma fábrica de fiação e tecidos de algodão" no Paleão, em Soure, data de 25 de Mato de 1934. 
 
Quais foram as grandes transformações ocorridas durante o período de gestão dos proprietários da Fabrica da Areosa? Importa referir que essa gestão ocorre em dois momentos distintos entre 1922 e 1927 e entre 1928 e 1942. A marcar a diferença que os separa situa-se a crise económica de 1927 durante a qual a empresa de Soure esteve fechada. 
 
Parece-nos que, na primeira fase, a estrutura fabril herdada da Companhia de Tomar manteve-se idêntica. As iniciativas de promoção fabril em África, levadas a cabo em 1928-9, mexeram com o mercado colonial, para o qual a Azevedo, Soares & Cª procurou enviar o grosso das encomendas. 
 
Este interesse pelo mercado colonial vai, mais uma vez, sustentar a produção de Soure. Assim, durante a década de trinta assiste-se a várias tentativas, algumas concretizadas de renovação do equipamento técnico e motriz do Paleão, nomeadamente a instalação de seis contínuos de 1692 fusos, em 30 de Agosto de 1936. Conhece-se com algum pormenor a passagem do testemunho entre os empresários da Fábrica da Areosa e os da Empresa Fabril do Norte, Lda, proprietários da fabrica da Senhora da Hora, em Matosinhos. 
 
Esta última encontrava-se historicamente ligada ao notável empresário Delfim Pereira da Costa (1862-1935), o qual soube reunir a sua volta vinte e nove personalidades da vida fabril e comercial do Porto dos princípios do século para em conjunto fundarem a Fábrica de Carrinhos de Algodão em 1905. Entretanto, depois de vinte anos sob a gerência da Fabrica da Areosa tinham nascido muito boas relações entre o eng. Luís Delgado dos Santos, natural de Paleão, envolvido na gestão da referida fábrica e da Empresa Fabril do Norte, onde ele era igualmente director. 
 
Aliás, em 1930, tanto Manuel Pinto de Azevedo, como João de Mendonça e o Eng. Luís Delgado Santos faziam já parte do Conselho de Administração da Empresa Fabril do Norte, Lda. A inquisição ocorreu em 29 de Dezembro de 1942, após a escritura de 14 de Agosto desse ano. Em 9 de Maio, a Assembleia Geral da Azevedo, Soares & Cª deliberou vender a "sua Fábrica de Fiação e Tecidos de Soure, com todos os seus haveres, todos os edificações, terrenos, moinhos ou azenhas, barracões e terrenos possui dos junto da Estação de Caminhos de Ferro de Soure ". A decisão foi tomada na sede do Interposto Comercial e Industrial do Norte, situado na Praça de Liberdade, no Porto, onde se reuniram os sócios da Fábrica de Fiação e Tecidos da Areosa.
 
Alegavam-se fracos "resultados compensadores" que motivavam as novas orientações económicas e fabris. A maioria via mais vantagens na exploração industrial da Fábrica de Soure, pela Empresa Fabril do Norte, Lda que, alias, era igualmente pertença do mesmo "grupo industrial". Entre as razões invocadas estariam a “facilidade de aplicação das apreciáveis quantidades dos desperdícios de algodão das suas penteadeiras para misturas com as ramadas de algodão, o que contribuiria para aumentar o contingente desta matéria prima, tornado a sua laboração muito mais proveitosa do que só com rama de algodão”. 
 
Tratava-se de aproveitar os desperdícios do algodão, economizando-os em Soure através do fabrico de produtos de segunda qualidade, mas igualmente vendáveis entre as classes baixas. Por outro lado, a produção da Senhora da Hora norteava-se para níveis maiores de qualidade e de marca Pinto de Azevedo, o engenheiro desta operação industrial, detinha então aproximadamente 1/3 do capital da Empresa Fabril do Norte, Lda. 
 
A firma compradora articularia os interesses dos sócios da Fábrica da Areosa as vantagens previstas com o negócio, pois assim se obrigavam às "condições expostas". Por outro lado, inviabilizava um parque de máquinas considerado obsoleto, pertença da Fábrica de Soure no contexto do Condicionamento Industrial Português, libertando-a do ónus de reter uma estrutura fabril semelhante àquela em que se iniciara a laboração, nos longínquos finais do séc. XIX.
 
A Empresa Fabril do Norte manteve-se na administração da Fábrica de Soure durante um dos mais largos períodos da sua história, entre 1942 e 1991. Estes quarenta e nove anos revelam mudanças significativas do ponto de vista administrativo, técnico, fabril, social e cultural, apanágio da Senhora da Hora. Em 1952-53 a Empresa Fabril do Norte passou de sociedade por quotas para uma sociedade anónima de responsabilidade limitada (SARL), com importantes modificações empresariais. Também, em 6 de Fevereiro de 1959, assume a direcção da firma, Manuel Pinto de Azevedo, Júnior (1905-1978), por falecimento do grande industrial Manuel Pinto de Azevedo.
 
Do ponto de vista técnico, o maquinismo de fiação foi modernizado, com maquinas continuas, passando a fabricar-se fiações de números médios, algodões penteados e cardados. A tecelagem, no entanto, desvalorizou-se em relação. A tecnologia de ponta da Senhora da Hora, tecendo-se panos menos finos e de pior qualidade. 
 
Também, na área dos acabamentos, a produção desloca-se de Soure para Matosinhos. A nível fabril uma das mais importantes modificações foi a introdução do sistema "Grinvell" de sprinklers, da Mather &  Platt de Manchester e Londres (Outubro de 1959). Tratou-se de um mecanismo automático, bastante engenhoso para impedir os incêndios em todo o espaço produtivo. Um motor centralizado transportava a água por canalizações separadas, que responderiam quando um sinal luminoso fosse quebrado. 
 
Esta inovação destinava-se a apoiar a nova fiação, que a montante recebeu significativas alterações, para responder as características produtivas do novo projecto industrial de Soure. Entre elas estavam as tulhas do algodão. Por outro lado, uma das mais importantes realizações da Empresa Fabril do Norte, em Paleão foi a construção da Fábrica de Maceração de Linho, cujo alvará data de 20 de Junho de 1958. 
 
A fábrica veio a estabelecer-se a nascente do antigo bairro operário em dois principais edifícios de planta rectangular. A licença previa a "indústria de maceração e preparação da fibra de linho e trituração de rações para gado", aspecto que resultava do aproveitamento dos subprodutos do próprio linho. 
 
O alvará estabelecia todas as condições necessárias a boa implantação dos edifícios, sua pavimentação e dimensões em altura, com estrutura metálica dos telhados, iluminação e ventilação dos edifícios, um sistema de aspiração e captação das poeiras e o tratamento das águas residuais, como forma de proteger o meio ambiente. 
 
Esta nova unidade fabril pressupôs a aquisição de propriedades pertencentes a João Cruz Neves e sua mulher Maria Conceição Gonçalves no local da Eira, por 25 mil escudos e outras parcelas que em conjunto formaram o espaço necessário para erguer a nova Fábrica do Linho. A literatura da época via nas fábricas de maceração de linho da Trofa e de Soure um dos grandes empreendimentos, aspecto que não fora considerado ate então "Nas centrais de maceração da Trofa (1945) e de Soure (1957) trabalham, anualmente, 1500 toneladas de palha de linho. 
Com as fibras ali obtidas, a fiação de linho produz cerca de 150 toneladas de fios de linho e estopa que abastecem, além da tecelagem da Empresa, as restantes tecelagens do País (entre as quais as da Fábrica Nacional de Cordoaria), exportando-se ainda cerca de 60% da sua produção para mercados estrangeiros". A Empresa Fabril do Norte administra a Fábrica do Paleão num momento significativo do ponto de vista das responsabilidades sociais das empresas fabris. Os aspectos médicos e de segurança social, os habitacionais e os sócio-culturais não foram descurados, muito embora se reconheça uma diferença substancial entre as intenções dos primeiros anos e a sua materialização efectiva. 
 
Todavia, na década de 60, para além da construção da Casa do Operário, que marcou a vivência da população local, a empresa dispunha de casas para os encarregados, consultório medico, do bairro operário dos finais do séc. XIX, da Casa do Delegado, da Casa da Administração e de um campo de jogos. A construção da Fabrica de Maceração de Linho gerara a ideia da edificação de um novo bairro operário organizado a partir de uma praça circular e quarteirões bem delimitados, para albergar quarenta e nove habitações individuais. 
 
Destas apenas duas casas foram construídas. A Casa do Operário foi obra que recebeu a protecção do Eng. Luiz Delgado Santos e foi inaugurada em 1965. A Casa do Operário dispunha de um clube desportivo. A empresa fomentou a constituição de uma orquestra típica, de um rancho folclórico e de um grupo de teatro, abrindo uma sala de espectáculos, estreada por Francisco Ribeiro (o Ribeirinho), em 11 de Dezembro de 1966.
 
A Empresa Fabril do Norte zelava então pela qualidade e estética dos arruamentos e atribuía prémios as casas mais floridas de Paleão. Depois da morte do Eng. Luiz Delgado dos Santos, a empresa e o povo de Paleão ergueram-lhe um busto, que por aquela aldeia se conserva, da autoria do mestre Barata Feyo, que veio a custar 35 contos de obra de escultura e 15 contos de fundição. Delgado dos Santos fora, aliás, quem contribuíra para a manutenção e a modernização da Fábrica de Paleão, na época da Empresa Fabril do Norte. Dedicara-se a Fábrica na sua infância e juventude. Colaborara com o pai no tempo da gestão de Tomar e da Azevedo, Soares & Cª. Por ela estudara engenharia na Universidade de Coimbra. Nela ascendera a director-administrador sendo um dos sócios mais importantes.
 
A situação da indústria portuguesa depois do 25 de Abril de 1974 muda radicalmente. O carácter proteccionista da economia do Estado Novo esboroa-se. Portugal vê-se perante a mundialização dos mercados e a indústria portuguesa e colocada em confronto com a livre concorrência, obrigando-se a renovação ou ao encerramento de unidades anquilosadas. 
 
Os aumentos salariais criam enormes dificuldades às empresas tradicionais e a renovação tecnológica tornou-se difícil no quadro das inúmeras dificuldades sociais, políticas e financeiras. A Fábrica de Soure, administrada por uma das mais importantes empresas portuguesas de largas tradições industriais, sobreviveu as mudanças estruturais dos anos 70, mas não pode deixar de ressentir-se perante a alteração do quadro económico e técnico dos anos oitenta. 
 
Era então uma fábrica envelhecida e com um equipamento obsoleto, sobretudo na área da tecelagem. Em 18 de Março de 1982 dá-se a rescisão do contrato de trabalho por mútuo acordo dos trabalhadores da secção de tecelagem, marcando o encerramento deste sector. Mas a renovada EFANOR, SA (1988) tentou ainda prolongar a vida da unidade de Paleão, criando uma nova empresa, para administrar a secção de fiação. A morte adiada correu sob o signo da EFANOR - FIOS, SA, entre 1991 e 1994. Esta última fase decorreu sob a gerência do empresário Belmiro de Azevedo (n.1938). 
 
O Eng. Belmiro de Azevedo fora um importante técnico da Empresa Fabril do Norte, SARL, que, em 1965, se despedira da têxtil para trabalhar como director da SONAE - Sociedade Nacional de Estratificados S A, uma empresa do Grupo Pinto de Magalhães virada para a produção de termolaminados decorativos e que passados alguns anos, viria a desenvolver actividades no sector dos aglomerados de madeira. Em 1984, Belmiro de Azevedo era já o líder do Grupo SONAE e em 1990 comprava a EFANOR, SA. Uns meses depois processava-se a reestruturação da EFANOR, SA, criando-se quatro empresas, a EFANOR FIOS, a EFANOR TECIDOS, a EFANOR LINHAS e a EFANOR IMOBILIÁRIA. A EFANOR FIOS tinha a fábrica mãe na Senhora da Hora e uma sucursal em Paleão.
 
O envelhecimento técnico da fábrica de Soure e a distância a que se encontrava do Norte inviabilizou a sua reconversão mantendo-se gerida por um delgado da empresa que ali se deslocava periodicamente. Durante três anos manteve-se essa relação umbilical, mas os custos e os problemas da sua manutenção determinaram o seu encerramento definitivo. Corria o ano de 1994.
 
in CUSTÓDIO, Jorge, A Máquina a Vapor de Soure. Fundação Belmiro de Azevedo, 1998

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