Esta
reportagem foi uma dose "p'ra leão"... não só pela fotogenia do local,
que nos deu um pleno êxtase com um cem número de oportunidades
fotográficas, como pela sua história, que nos fez regredir ao auge de um Portugal industrial, e ainda pela a agradável companhia que tive o privilégio de levar...
Foi
na sequência da pesquisa sobre a Efanor - Fábrica dos Carrinhos, que me
deparei com este apetecível cenário que era uma extensão dessa unidade
industrial... pelos contactos feitos com a Fundação Belmiro de Azevedo, proporcionou-se uma visita guiada em exclusivo para o Ruin'Arte... foi um dos mais altos momentos deste projecto.
A
fábrica encontra-se devoluta e é tenazmente guardada por uma matilha de
cães de guarda, pelo que não aconselho a visita sem a devida
autorização e companhia credenciada e oficial... se tiverem amor ao
fundo das calças...
Desta
velha unidade industrial, restam além dos devolutos espaços e
infindáveis memórias, uma bem preservada central energética que foi
outrora o coração de um elaborado sistema de produção, que por si só
constitui um valioso espólio museológico.
Embora
a laboração tenha aqui cessado, os terrenos da Fábrica do Paleão estão a
ser explorados com uma intensa cultura de kiwis, rentabilizando uma
parte desta propriedade... o que me leva a sugerir a adaptação desta
enorme estrutura numa grande estufa...
O
fornecimento de água está garantido pelo rio e o espaço além de
generoso é suficientemente iluminado, o que é fundamental para o
crescimento de qualquer planta.
Este
projecto, não só preservaria a fábrica, como dinamizaria a economia da
região, constituiria novamente os muito desejados empregos, que tanto
faltam, e seria mais um rendimento para a Sonae, que é o maior gerador
financeiro e empregador do País.
Aqui
vos deixo uma viagem pela história e por este local, devidamente
documentado por um autor de craveira, e gentilmente cedido pela fundação
supra-citada, a quem devo um grande OBRIGADO, tal como a todos os que
intervieram nesta memorável sessão...
A Natureza
criou sítios especiais que, por qualquer magia dos elementos, gerou
paisagens admiráveis. Em Paleão, pequena aldeia do concelho de Soure, a obra da Natureza
tem um cunho próprio e não é desde logo acessível. Esconde-se de
olhos estranhos. Oculta-se por detrás das construções regulares.
Não
é acessível ao forasteiro que a desconhece ou que não teve a
possibilidade de penetrar no seu espaço, seguindo as vias
transitáveis. Também não é dominada por quem convive quotidianamente com
ela.
Nem sequer tem a forma de uma maravilha do mundo, nem é um
fenómeno
cultural de valor excepcional.
A Natureza construiu ali campos rasos, rodeados de contrafortes
rochosos das serras vizinhas, entre as quais a de Sicó, que os
envolvem a nascente, numa coroa de altitudes médias. Só que esses
campos foram talhados pelas abundantes águas que correndo dos
riachos e ribeiras nunca chegaram, por incrível que pareça, a
formar caudal nem grande rio.
Antes pelo contrário, foram linhas de
água convivendo com suas irmãs gémeas, trilhando cada qual o seu
caminho pelos campos talhados de eras geológicas, todas à procura
de uma foz onde engrossassem e fossem unas até ao oceano.
Esta
particularidade foi aproveitada pelo trabalho dos antigos
"arquitectos" de moinhos e azenhas, que logo descobriram um
manancial de energia para erguer açudes, acéquias, levadas
ou
canais e assim mover seus engenhos de farinha. Um dia, houve
quem
chegasse a pensar que se poderia criar um canal que pusesse
em
comunicação a Figueira da Foz com Soure.
Numa rápida visão, reconhece se ali um conjunto de moinhos de
várias pedras, hoje em menor número do que antes da revolução
industrial. Localizavam-se na levada do Orão e no Rio Anços.
Fazendo trabalhar em 1885, trinta e cinco pares de pedras movidas
por azenhas e rodízios, para além de um grande lagar hidráulico
com quatro varas e várias noras.
Junto a Soure essas abundantes águas também eram aproveitadas em vários moinhos e azenhas,
aspecto que não passava despercebido a quem via no trabalho
industrial uma forma de desenvolvimento.
Mas, para observar toda essa riqueza técnica e económica que
fizeram dos moinhos de Soure e de Paleão um mundo a parte na
molinologia portuguesa, e necessário despender algum esforço.
Procurá-los
por entre os campos rasgados, observar-lhes as características,
ouvir o murmurar das águas nos saltos de desnível, respirar o
cheiro das farinhas, dominar uma paisagem que, sem deixar de ser um
panorama, adquire aqui e acolá o estigma da intervenção da
cultura tecnológica.
Ora o moinho não é senão o embrião da
fábrica e da indústria moderna. Esta intuição do lugar e das suas vantagens industriais só se
materializou nos meados do séc. XIX. Até então as terras eram de
pão, de hortas e de frutos, para alimento e mercado das comunidades
rurais daquela vasta região de grandes tradições agrícolas e
cujos ritmos laborais se prendem ao fundo cultural do Portugal
andaluz.
O
rio de Orão, antes de lançar as suas águas no Anços,
recebia as nascentes a montante que engrossavam a corrente
fluvial. No rio Anços foi construída uma represa de pedra, o açude do
Lourenço, que permitia captar as águas para a irrigação dos
terrenos agrícolas, manancial aquífero sujeito ao regime
colectivo
ancestral de aproveitamento dos proprietários daqueles
terrenos.
Depois da junção dos dois rios, o açude do Juncal separa a
Natureza da obra do Homem A grande vala velha, chamada de Entre-Águas,
rasgada pelos moleiros e agricultores de outras eras, servia quatro
engenhos na margem direita e cinco noras de irrigação, três na
margem esquerda e duas na direita, já próximas dos Moinhos do Paleão,
o das doze pedras.
Um novo açude - da Azenha - abastecia a
regadeira antiga. Depois de servir os rodízios dos Moinhos do Paleão,
a vala velha descarregava e ainda desagua no Rio Anços e nele se
apoia para continuar para outras paragens até atingir os Moinhos
Novos, não sem que, no Rio Anços, se erguesse um novo açude - o
da Serrada - por sua vez servindo nova azenha Toponímia de sítios
e de regas, os nomes falavam de aguas e de propriedades cerradas,
onde os representantes das fainas agrícolas manifestavam uma
organização comunitária de usufruto dos caudais. Alagoa, Canal da
Caniceira, Cancelas, Cerrados, Conqueiros, Pousios são os sítios
em que a agua era a fonte de riqueza, para os moinhos e para as
diferentes regueiras que por ali havia e que faziam perpetuar os hábitos
agrícolas ancestrais e as motivações rotineiras dos proprietários
agrícolas e rendeiros.
A geografia neste micro-espaço tem muito a
retirar da observação das coisas e dos homens, um dia varridos por
um vendaval diferente, quando se pensou aderir ao fenómeno da
industrialização, que na Europa fazia de campos, cidades, de
riachos, uns tantos canais e de abegoarias, fabricas mecanizadas.
Em
1884 era vice-presidente da Câmara de Soure o advogado Evaristo
Maria das Neves Ferreira de Carvalho. Conhecia naturalmente aquela
região onde se afeiçoara desde criança e observara o caudal das
suas aguas, facto que o levou a reconhecer a sua importância
industrial.
A sua oposição à rotina e a "descrença pirrónica"
que grassava na região de Soure, numa altura em que a linha de
caminho de ferro do Norte escolhera a povoação templária para se
implantar, deu-lhe energia para lutar contra o desalento.
Nessa
altura o espírito de empresa despontara naquele concelho, com a
exploração dos jazigos de gesso de Alencarce, a 4 km de Soure e na
Amieira, onde se estabeleceram umas termas para engarrafar aguas de
grande riqueza e qualidade.
O movimento industrial chegava a Soure
Mas necessitava de um grande impulso de inteligência, resolvido por
Evaristo de Carvalho, a partir do conhecimento energético das aguas
da região Soure - Paleão Com esse objectivo, estimula e patrocina
os estudos hidráulicos na área dos moinhos no Paleão, de modo a
sustentar o estabelecimento de uma grande empresa industrial As
plantas e os estudos foram entregues ao engenheiro mecânico francês,
Scipião Bouvret.
O
projecto primitivo previa a localização
industrial a meio de uma pequena colina em S. Mateus, perto
de Paleão. A ideia inicial pressupunha a construção de um canal, um
quilómetro
acima dos moinhos do Juncal Esta primeira opção foi
abandonada por
razões até agora desconhecidas.
Scipião
Bouvret, do qual pouco se
sabe. também se viu afastado do projecto ao qual dera corpo
técnico
e a nova implantação aproximou-se do espaço, onde se
implantou
uma das mais importantes fábricas de algodões do centro do
país. Diversas condições foram consideradas na análise do projecto
industrial dos empresários de Soure Para além da riqueza da
força
motriz hidráulica, a situação do estabelecimento beneficiava
da
higiene, da economia, dos recursos naturais e das
acessibilidades.
A
paisagem era rural e o ambiente saudável e desafogado,
"recebendo ar e luz de todos os lados". Os salários dos
trabalhadores rurais da região eram baixos, permitindo uma economia
de capital variável, aspecto não displicente se atendermos às
características salariais do trabalho fabril nos grandes centros
industriais. Por outro lado, o operário da nova fábrica de Paleão
poderia conjugar as suas actividades laborais com a faina da terra,
aspecto que foi salientado por Amado Mendes.
A nível dos recursos
naturais, atendendo à necessidade de força motriz a vapor
poder-se-ia utilizar os jazigos de linhite do concelho de Soure ou
mesmo os de carvão de Buarcos, como aliás veio a acontecer
Finalmente, o estabelecimento industrial ficava no centro de uma
região de importantes localidades e servido de caminho de ferro, de
estradas municipais e de ligação fluvial à Figueira da Foz.
Entre as opções industriais da moagem, do papel, do fabrico de
linho e do algodão, os promotores da fábrica do Paleão investiram
no têxtil algodoeiro, em fase crescente no Pais, muito embora a matéria-prima
fosse importada e o escoamento dos produtos pudesse esbarrar com a
concorrência nacional e internacional.
Certas necessidades do
mercado nacional, como o fio n.º 30 e os panos de algodão, eram
motivos mais que suficientes para justificarem essa opção. No
entanto, para os lucros serem razoáveis era necessário que a fábrica
se erguesse no perfeito conhecimento das inovações técnicas mais
modernas e na presunção da construção de edifícios de raiz,
segundo os melhores modelos estrangeiros.
Com a capacidade motora de 175 C/V o engenheiro francês admitia que
podia pôr em funcionamento 10.000 fusos e 200 teares, reunidos numa
área coberta de 4 200 m2. Como o espaço necessário
para criar pátios, jardim e habitação do director era de 4 800 m2
a instalação fabril atingiria os 9.000 m2, numa media
de 6$ooo reis por m2 de área industrial.
Bouvret
organiza o caderno de encargos da fábrica, construída por uma
companhia fabril, indicando o valor do material, das edificações
(450 contos) e do custo de fabricação, atendendo aos quadros técnicos,
à fiação, à tecelagem e à tinturaria (35 contos). Com um investimento global de 485 contos pensava-se no eldorado
industrial. Os custos de produção de 400 toneladas de algodão
bruto eram estimados em 207 contos e quinhentos mil reis.
Com esse
algodão podia produzir-se 1.440.000 metros de tecido o que renderia
302,4 contos. Os industriais poderiam ficar satisfeitos, pois o
rendimento liquido rondava os 95 contos/ano e o fundo de reserva,
depois dos dividendos distribuídos, era de 14,9 contos.
Numa
perspectiva minimalista, atendendo à diminuição de C/V durante a
estiagem, mesmo assim seria possível distribuir 10 a 13% de lucros
aos accionistas, num montante de 60,8 contos. O modelo fabril assentaria numa fábrica exemplar com boa iluminação
natural e artificial, pensada globalmente em todos os aspectos mesmo
os do foro social, prevendo-se desde o inicio habitações para operários.
A política da economia de salários podia ser assim colmatada, pois
o empresário não tinha como objectivo "a exploração do operário",
apenas aproveitava as circunstâncias "de fácil intuição,
perfeitamente conhecidas" da diferença de salários entre a
Capital e a vila de Soure.
Bouvret chegou a desenhar a planta das
instalações segundo as modernas regras de implantação das
fábricas têxteis, adoptando uma racionalização do espaço em área
quadrada regular de um piso, com cobertura em shed assenta
sobre asnas e colunas de ferro e iluminação natural, a Norte.
Na posse deste projecto foi fácil aos impulsionadores da
industrialização de Soure fazerem vingar a criação de uma
companhia, cujos estatutos se encontram concluídos em 27 de Junho
de 1885.
A Companhia Fabril e Industrial de Soure, SARL, com sede em Lisboa,
organiza-se para aproveitar a "força motriz hidráulica dos
rios Anços e d'Orão, principalmente para montar uma fábrica de
artefactos de algodão e matérias similares, podendo também
aproveitar a mesma força motriz para qualquer outra indústria que a
direcção julgar conveniente".
Os accionistas irão beneficiar de uma cedência gratuita do
principal impulsionador - Evaristo Carvalho - de todos os direitos
adquiridos dos escrituras de promessa de venda com proprietários da
região e de Montemor-o-Velho sobre os direitos das águas.
Essa cedência
garantiu-lhe o lugar de fundador, com dez títulos da Companhia e um
pagamento de 10 contos de réis. Um dos mais importantes factos deste período de arranque foi a
mudança de localização da fábrica.
O projecto de Bouvret previa
a implantação junto a estrada municipal de 1ª classe de Soure a
Ancião, nas circunvizinhanças do Casal de S. Mateus, onde se ergue
uma interessante ermida medieval, mesmo em frente dos Casais da
Borda do Rio.
Em 8 de Dezembro de 1885, Bouvret acompanha o
levantamento topográfico do conductor de obras públicas, Justino
da Silva Taveira, delimitando se o terreno junto à estrada
municipal e anotando em francês as legendas da planta escritas em
português.
Algumas das escrituras de promessa de compra e venda,
celebradas por Evaristo de Carvalho, entre 1884 e 1885, pressupunham
essa opção bastante assimilada a da localização em São Mateus.
No entanto, as obras de construção efectuaram-se para o Sul de
Paleão, nas proximidades dos Moinhos daquele lugar na margem
direita da nova vala para a irrigação, que corre ali quase
paralela ao Rio Anços.
O novo canal ou vala foi rasgado na vala
velha de Entre-Águas, com um canal de descarga no seu troço Norte. A alteração de localização motivou o desvio das linhas aquíferas
por parte da Companhia Fabril, situação que motivou uma importante
escritura com os trinta e quatro proprietários das aguas e dos
terrenos circunvizinhos da futura levada, situação com incidências
no canal de Entre-Águas e na regueira de propriedade comum.
A
celebração do contrato determinou a obrigação dos directores
construírem uma ponte de alvenaria, por cima do canal e uma
regueira nova de pedra e cal, cimentada no seu interior para
que as águas corressem ao mesmo nível, do que antigamente. Em
contrapartida o curso das águas seria desviado do seu leito
habitual
para a Levada, no sitio das Cancelas.
Para além destas obrigações houve necessidade de estabelecer
escritura entre a Companhia e os proprietários vizinhos.
Estabeleceu-se que CJS proprietários agrícolas só autorizavam o
desvio acima referido, desde que não fosse elevado o nível das águas
de modo a não ficarem prejudicados com a inundação das suas
terras, nem deixarem de mover as suas noras pela falta de declive.
Os acordos implicaram também medidas ecológicas avant la lettre,
pois as águas industriais não podiam ser misturadas com as das
regas ou outros usos públicos ou privados, e a autorização
expressa de poderem regar com as águas da levada.
As obrigações
foram de colocar duas comportas, na intercessão da levada antiga
com o novo canal, cuja regulação ficou assente entre ambas as
partes de modo a viabilizar o projecto industrial, sem prejudicar os
interesses agrícolas dos proprietários locais.
Entretanto desde 21 de Agosto de 1888, que existiam plantas
definitivas e orçamentos para o edifício e diversas estimativas
para a sua construção Negociações entabuladas com o construtor
Francisco Baerlein, representante da firma Baerlein & Cº de
Manchester sediado na Rua da Prata, em Lisboa, determinaram a
celebração de um contrato com o empreiteiro, em 6 de Setembro de
1888. O acordo estabelecia a montagem global da maquinaria na
fábrica, da qual os construtores também eram os empreiteiros civis,
de modo a criar uma unidade industrial de primeira ordem.
As obras de edificação da fábrica decorreram entre 1888 e 1891,
segundo o modelo de Brouvet, no entanto adaptado as novas realidades
e modalidades Lideram este processo outros accionistas investidos
com os cargos de directores, entre os quais consta ainda o Dr.
Evaristo Maria Ferreira de Carvalho, para além de Alexandre Eduardo
de Sousa Alvim, do Dr. Francisco Teixeira de Queiroz, de João Lobo
Santiago Gouveia e de Mem Rodrigues de Vasconcelos.
Não foi encontrado o contrato entre Francisco Baerlein e a
Companhia. Todavia deve ser semelhante ao que o empreiteiro assinou
em 18 de Agosto do mesmo ano com os repensáveis da Companhia
Oriental de Fiação e Tecidos, em Xabregas. Por um lado, Baerlein
mandava edificar as instalações industriais segundo os melhores
processos da época. Teria de abrir o canal para o funcionamento de
uma turbina.
Forneceria igualmente "o machinismo o mais aperfeiçoado
para a indústria de fiação e tecelagem de algodão, incluindo a
machina a vapor para toda a fábrica e suas respectivas
caldeiras".' Todas as condições de perfeição de maquinismo,
"aperfeiçoamentos mais recentes" de iluminação, segurança
e ventilação outras normas que se encontram no contrato da empresa
de Xabregas se reverteram para Soure, uns dias depois, facto que
pode ser testemunhado por documentos da Companhia de Soure. Em ambos
os casos foram montadas máquinas a vapor de efeitos múltiplos, do
sistema coumpond de alta e baixa pressão, prestes a
funcionar em 1891.
Para a mudança de localização, em 1889, foi necessário proceder
a compra de terrenos a vários proprietários dos sítios de
Cancelas, de Cunqueiro, da Serrada e da Caniceira, para obras no
canal da Fábrica e assentamentos de propriedade e trocar outros bens
de raiz já adquiridos pelos que eram necessários, como por
exemplo, os terrenos da Ameixoeira.
Quando a Fábrica de Soure foi
concluída e inaugurada em meados de 1891, entre os empresários e
nos circuitos económicos de Portugal sabia-se que fora
"construída com o pensamento de ser uma fabrica modelo, com
todos os melhoramentos modernos”.
Todavia, a falta de pagamentos a
F. Baerlein e um moroso contencioso com o empreiteiro vieram
protelar o inicio da laboração e alterar os projectos ambiciosos
dos empresários da Companhia Fabril e Industrial de Soure.
Essas
modificações ocorreram durante a crise política e económica
de 1891, depois do Ultimatum inglês e da crise algodoeira
mundial. No panorama industrial português a Fábrica de Fiação e Tecidos
de
Soure pode considerar-se uma unidade fabril de sucesso, pois
ultrapassou uma centúria de existência.
Pertenceu a terceira geração
de unidades maquinofactureiras e apesar de alguma perturbação
administrativa subsistiu as crises, mantendo a sua presença na
paisagem e assumindo-se como património industrial, até que em
1994 foi encerrada definitivamente.
Entre as fábricas algodoeiras
foi uma das mais antigas do Baixo Mondego e uma das têxteis mais
modelares da região e " área económica" de Coimbra. Ao
longo dos cento e três anos de laboração passou por seis períodos
administrativos fundamentais, sem contar com o período de construção
e instalação (1888-1991).
Inicialmente foi propriedade da
Companhia Fabril e Industrial de Soure, empresa que lhe deu existência
como unidade fabril e a preparou para a produção algodoeira. Nos estudos sobre a Fabrica de Soure verifica-se uma omissão sobre
este curto período.
No entanto, a documentação que se encontra em
Tomar é elucidativa do modo como a Fábrica foi minuciosamente
pensada para se tornar numa unidade modelar.
Enquanto decorria a sua
construção, os directores da Companhia contrataram um escriturário
das Minas de S. Domingos, concelho de Mértola, chamado João Zink,
para a organização e administração da actividade fabril de Soure
João Zink foi encarregado, em Janeiro de 1890, de visitar a
Inglaterra para se inteirar do desenvolvimento das fábricas britânicas
e "engajar" mestres para as diversas secções fabris.
Visitou também as fábricas de Barcelona, com o mesmo objectivo. Em
Abril, já havia contratado pessoal para Soure, mestres em efectivo
serviço industrial nos primeiros meses de 1891. Na realidade, em
fins de Janeiro desse ano, a fábrica encontrava-se completamente
construída, com a instalação dos maquinismos.
Através do livro
Diário n.º1, da Companhia de Soure, sabe-se quem eram os técnicos
ingleses "engajados": J Parkes, John Lee, P Walter e A
Prestwich. Mas nos finais desse mesmo ano, já os quatro teriam
regressado por falta de capital e liquidez para o pagamento dos salários.
Por outro lado, consome-se algum carvão, facto que corrobora um
inicio de actividade com motor central de energia a vapor. As
expectativas dos primitivos fundadores em obterem pessoal operário
a partir da população local tinha-se gorado.
Zink havia contratado
operários no Porto, pagos para o arranque da produção. A
actividade de Zink, reconhecível em todos os aspectos do lançamento
do projecto fabril de Soure, grangeou-lhe um lugar à parte na vida
fabril da unidade industrial, aspecto que contribuíra para a sua
continuação como principal gestor da empresa, depois da crise de
1890-1891.
Entre
1885 - data da constituição da Companhia - e 1892 - altura em que
se funde com Companhia da Real Fabrica de Fiação de Tomar - aquela
sociedade moveu-se entre as dificuldades da concretização do
projecto e do arranque da produção e o investimento gigantesco a
que foi chamada a materializar.
Por essa razão a própria Companhia
não teve uma história linear e os antigos fundadores acabaram por
soçobrar ao "império" da fiação de Tomar e da sua
marca registada. Há que compreender a ideia de fusão como uma solução
para a continuidade do projecto de Soure e como uma resposta à
euforia dos accionistas da Companhia da Fábrica de Fiação de Tomar
entre os finais da década de 80 e os inícios da década de 90.
A
decisão da fusão foi objecto de aprovação em Assembleia Geral da
Companhia de Tomar de 4 de Agosto de 1892 é corroborada por uma
assembleia conjunta das duas companhias, em 29 desse mesmo mês, sob
a direcção do Presidente da Assembleia Geral, Manuel Joaquim Alves
Dias, personalidade aceite por ambas.
Desde a sua origem a Fábrica de Soure esteve relacionada com o
capital lisboeta, mesmo quando se fundiu com a Fábrica de Fiação
de Tomar. Todavia, a partir de 1922 o controle da unidade algodoeira
de Soure passa para as mãos do capital portuense. De
facto, em 1922 e adquirida pelos futuros empresários da Fábrica
da Areosa, do Porto, primeiro sob a designação da firma
Azevedo & Cª, Lda, a arrendatária de 1917 e, depois da crise
económica
de 1927 sob o giro da Azevedo, Soares & Ca Lda.
As
circunstâncias da passagem da propriedade da Fábrica de Soure para a
posse dos empresários nortenhos não se encontram totalmente
esclarecidas. As rendas continuaram a pagar-se até meados de 1922,
mas o corte definitivo com Tomar só se encontra registado a partir
de 10 de Janeiro de 1924.
O desaparecimento do último volume da
correspondência entre as fábricas impede clareza sobre este
assunto, até porque Carlos Santos (e seu filho Luís Delgado dos
Santos, nos impedimentos temporários do pai) e ainda, até Janeiro
de 1924, o representante da Companhia de Tomar em Soure.
Por outro
lado, sabemos que tanto o pai como o filho se encontram ligados aos
responsáveis da Azevedo & Cª, Lda, desde os primeiros anos,
mantendo-se em actividade no novo período administrativo. Por fim,
os directores de Tomar deixam de nomeá-lo como administrador a
partir de 4 de Junho de 1921, o que indicia uma
mutação
na história da empresa de Soure.
Aliás, nos inícios da década de
20 os directores de Tomar solicitam diversos pagamentos a Manuel
Pinto de Azevedo, por conta do arrendamento. Finalmente refira-se que
o Alvará da empresa Azevedo
& Cª, Lda para a exploração de "uma fábrica de fiação
e tecidos de algodão" no Paleão, em Soure, data de 25 de Mato
de 1934.
Quais foram as grandes transformações ocorridas durante o
período de gestão dos proprietários da Fabrica da Areosa? Importa
referir que essa gestão ocorre em dois momentos distintos entre
1922 e 1927 e entre 1928 e 1942. A marcar a diferença que os separa
situa-se a crise económica de 1927 durante a qual a empresa de Soure
esteve fechada.
Parece-nos que, na primeira fase, a estrutura fabril
herdada da Companhia de Tomar manteve-se idêntica. As iniciativas
de promoção fabril em África, levadas a cabo em 1928-9, mexeram
com o mercado colonial, para o qual a Azevedo, Soares & Cª
procurou enviar o grosso das encomendas.
Este interesse pelo mercado
colonial vai, mais uma vez, sustentar a produção de Soure. Assim,
durante a década de trinta assiste-se a várias tentativas, algumas
concretizadas de renovação do equipamento técnico e motriz do
Paleão, nomeadamente a instalação de seis contínuos de 1692
fusos, em 30 de Agosto de 1936. Conhece-se com algum pormenor a
passagem do testemunho entre os empresários da Fábrica da Areosa e
os da Empresa Fabril do Norte, Lda, proprietários da fabrica da
Senhora da Hora, em Matosinhos.
Esta última encontrava-se
historicamente ligada ao notável empresário Delfim Pereira da
Costa (1862-1935), o qual soube reunir a sua volta vinte e nove
personalidades da vida fabril e comercial do Porto dos princípios
do século para em conjunto fundarem a Fábrica de Carrinhos de Algodão
em 1905. Entretanto, depois de vinte anos sob a gerência da Fabrica da
Areosa tinham nascido muito boas relações entre o eng. Luís
Delgado dos Santos, natural de Paleão, envolvido na gestão da
referida fábrica e da Empresa Fabril do Norte, onde ele era
igualmente director.
Aliás,
em 1930, tanto Manuel Pinto de Azevedo,
como João de Mendonça e o Eng. Luís Delgado Santos faziam já
parte do Conselho de Administração da Empresa Fabril do
Norte, Lda. A inquisição ocorreu em 29 de Dezembro de 1942, após a
escritura
de 14 de Agosto desse ano. Em 9 de
Maio, a Assembleia Geral da
Azevedo, Soares & Cª deliberou vender a "sua Fábrica de
Fiação e Tecidos de Soure, com todos os seus haveres, todos
os
edificações, terrenos, moinhos ou azenhas, barracões e
terrenos
possui dos junto da Estação de Caminhos de Ferro de Soure ".
A decisão foi tomada na sede do Interposto Comercial e Industrial
do Norte, situado na Praça de Liberdade, no Porto, onde se
reuniram
os sócios da Fábrica de Fiação e Tecidos da Areosa.
Alegavam-se
fracos "resultados compensadores" que motivavam as novas
orientações económicas e fabris. A maioria via mais vantagens na
exploração industrial da Fábrica de Soure, pela Empresa Fabril do
Norte, Lda que, alias, era igualmente pertença do mesmo "grupo
industrial". Entre as razões invocadas estariam a
“facilidade de aplicação das apreciáveis quantidades dos
desperdícios de algodão das suas penteadeiras para misturas com as
ramadas de algodão, o que contribuiria para aumentar o contingente
desta matéria prima, tornado a sua laboração muito mais
proveitosa do que só com rama de algodão”.
Tratava-se de
aproveitar os desperdícios do algodão, economizando-os em Soure
através do fabrico de produtos de segunda qualidade, mas igualmente
vendáveis entre as classes baixas. Por outro lado, a produção da
Senhora da Hora norteava-se para níveis maiores de qualidade e de
marca Pinto de Azevedo, o engenheiro desta operação industrial,
detinha então aproximadamente 1/3 do capital da Empresa Fabril do
Norte, Lda.
A firma compradora articularia os interesses dos sócios
da Fábrica da Areosa as vantagens previstas com o negócio, pois
assim se obrigavam às "condições expostas". Por outro
lado, inviabilizava um parque de máquinas considerado obsoleto,
pertença da Fábrica de Soure no contexto do Condicionamento
Industrial Português, libertando-a do ónus de reter uma estrutura
fabril semelhante àquela em que se iniciara a laboração, nos longínquos
finais do séc. XIX.
A Empresa Fabril do Norte manteve-se na administração da Fábrica
de Soure durante um dos mais largos períodos da sua história,
entre 1942 e 1991. Estes quarenta e nove anos revelam mudanças
significativas do ponto de vista administrativo, técnico, fabril,
social e cultural, apanágio da Senhora da Hora. Em 1952-53 a
Empresa Fabril do Norte passou de sociedade por quotas para uma
sociedade anónima de responsabilidade limitada (SARL), com
importantes modificações empresariais. Também, em 6 de Fevereiro
de 1959, assume a direcção da firma, Manuel Pinto de
Azevedo, Júnior (1905-1978), por falecimento do grande industrial
Manuel Pinto de Azevedo.
Do ponto de vista técnico, o maquinismo de fiação foi
modernizado, com maquinas continuas, passando a fabricar-se fiações
de números médios, algodões penteados e cardados. A tecelagem, no
entanto, desvalorizou-se em relação. A tecnologia de ponta da
Senhora da Hora, tecendo-se panos menos finos e de pior qualidade.
Também, na área dos acabamentos, a produção desloca-se de Soure
para Matosinhos. A nível fabril uma das mais importantes modificações
foi a introdução do sistema "Grinvell" de sprinklers,
da Mather & Platt de Manchester e Londres (Outubro de
1959). Tratou-se de um mecanismo automático, bastante engenhoso para
impedir os incêndios em todo o espaço produtivo. Um motor
centralizado transportava a água por canalizações separadas,
que
responderiam quando um sinal luminoso fosse quebrado.
Esta inovação
destinava-se a apoiar a nova fiação, que a montante recebeu
significativas alterações, para responder as características
produtivas do novo projecto industrial de Soure. Entre elas estavam
as tulhas do algodão. Por outro lado, uma das mais importantes
realizações da Empresa Fabril do Norte, em Paleão foi a construção
da Fábrica de Maceração de Linho, cujo alvará data de 20 de Junho
de 1958.
A fábrica veio a estabelecer-se a nascente do antigo bairro
operário em dois principais edifícios de planta rectangular. A
licença previa a "indústria de maceração e preparação da
fibra de linho e trituração de rações para gado", aspecto
que resultava do aproveitamento dos subprodutos do próprio linho.
O
alvará estabelecia todas as condições necessárias a boa implantação
dos edifícios, sua pavimentação e dimensões em altura, com
estrutura metálica dos telhados, iluminação e ventilação dos
edifícios, um sistema de aspiração e captação das poeiras e o
tratamento das águas residuais, como forma de proteger
o meio ambiente.
Esta nova unidade fabril pressupôs a aquisição
de propriedades pertencentes a João Cruz Neves e sua mulher Maria
Conceição Gonçalves no local da Eira, por 25 mil escudos e outras
parcelas que em conjunto formaram o espaço necessário para erguer
a nova Fábrica do Linho. A literatura da época via nas fábricas de
maceração de linho da Trofa e de Soure um dos grandes
empreendimentos, aspecto que não fora considerado ate então
"Nas centrais de maceração da Trofa (1945) e de Soure (1957)
trabalham, anualmente, 1500 toneladas de palha de linho.
Com as
fibras ali obtidas, a fiação de linho produz cerca de 150
toneladas de fios de linho e estopa que abastecem, além da tecelagem
da Empresa, as restantes tecelagens do País (entre as quais as da
Fábrica Nacional de Cordoaria), exportando-se ainda cerca de 60% da
sua produção para mercados estrangeiros". A Empresa Fabril do Norte administra a Fábrica
do Paleão num momento significativo do ponto de vista das
responsabilidades sociais das empresas fabris. Os aspectos médicos
e de segurança social, os habitacionais e os sócio-culturais não
foram descurados, muito embora se reconheça uma diferença
substancial entre as intenções dos primeiros anos e a sua
materialização efectiva.
Todavia, na década de 60, para além da
construção da Casa do Operário, que marcou a vivência da população
local, a empresa dispunha de casas para os encarregados, consultório
medico, do bairro operário dos finais do séc. XIX, da Casa do
Delegado, da Casa da Administração e de um campo de jogos. A
construção da Fabrica de Maceração de Linho gerara a ideia da
edificação de um novo bairro operário organizado a partir de uma
praça circular e quarteirões bem delimitados, para albergar
quarenta e nove habitações individuais.
Destas apenas duas casas
foram construídas. A Casa do Operário foi obra que recebeu a
protecção do Eng. Luiz Delgado Santos e foi inaugurada em 1965. A Casa do Operário dispunha de um clube desportivo. A empresa
fomentou a constituição de uma orquestra típica, de um rancho
folclórico e de um grupo de teatro, abrindo uma sala de espectáculos,
estreada por Francisco Ribeiro (o Ribeirinho), em 11 de Dezembro de
1966.
A
Empresa Fabril do Norte zelava então pela qualidade e estética
dos arruamentos e atribuía prémios as casas mais floridas de
Paleão. Depois da morte do Eng. Luiz Delgado dos Santos, a empresa e o
povo
de Paleão ergueram-lhe um busto, que por aquela aldeia se
conserva,
da autoria do mestre Barata Feyo, que veio a custar 35
contos de
obra de escultura e 15 contos de fundição. Delgado dos Santos fora, aliás, quem contribuíra para a manutenção
e a modernização da Fábrica de Paleão, na época da Empresa
Fabril do Norte. Dedicara-se a Fábrica na sua infância e juventude.
Colaborara com o pai no tempo da gestão de Tomar e da Azevedo,
Soares & Cª. Por ela estudara engenharia na Universidade de
Coimbra. Nela ascendera a director-administrador sendo um dos sócios
mais importantes.
A situação da indústria portuguesa depois do 25 de Abril de 1974
muda radicalmente. O carácter proteccionista da economia do Estado
Novo esboroa-se. Portugal vê-se perante a mundialização dos
mercados e a indústria portuguesa e colocada em confronto com a
livre concorrência, obrigando-se a renovação ou ao encerramento
de unidades anquilosadas.
Os aumentos salariais criam enormes
dificuldades às empresas tradicionais e a renovação tecnológica
tornou-se difícil no quadro das inúmeras dificuldades sociais, políticas
e financeiras. A Fábrica de Soure, administrada por uma das mais importantes
empresas portuguesas de largas tradições industriais, sobreviveu
as mudanças estruturais dos anos 70, mas não pode deixar de
ressentir-se perante a alteração do quadro económico e técnico
dos anos oitenta.
Era então uma fábrica envelhecida e com um
equipamento obsoleto, sobretudo na área da tecelagem. Em 18 de Março
de 1982 dá-se a rescisão do contrato de trabalho por mútuo acordo
dos trabalhadores da secção de tecelagem, marcando o encerramento
deste sector. Mas a renovada EFANOR, SA (1988) tentou ainda
prolongar a vida da unidade de Paleão, criando uma nova empresa,
para administrar a secção de fiação. A morte adiada correu sob o
signo da EFANOR - FIOS, SA, entre 1991 e 1994. Esta última fase
decorreu sob a gerência do empresário Belmiro de Azevedo (n.1938).
O Eng. Belmiro de Azevedo fora um importante técnico da Empresa
Fabril do Norte, SARL, que, em 1965, se despedira da têxtil para
trabalhar como director da SONAE - Sociedade Nacional de
Estratificados S A, uma empresa do Grupo Pinto de Magalhães virada
para a produção de termolaminados decorativos e que passados
alguns anos, viria a desenvolver actividades no sector dos
aglomerados de madeira. Em 1984, Belmiro de Azevedo era já o líder
do Grupo SONAE e em 1990 comprava a EFANOR, SA. Uns meses depois
processava-se a reestruturação da EFANOR, SA, criando-se quatro
empresas, a EFANOR FIOS, a EFANOR TECIDOS, a EFANOR LINHAS e a
EFANOR IMOBILIÁRIA. A EFANOR FIOS tinha a fábrica mãe na Senhora da
Hora e uma sucursal em Paleão.
O
envelhecimento técnico da fábrica de Soure e a distância a que se
encontrava do Norte inviabilizou a sua reconversão mantendo-se
gerida por um delgado da empresa que ali se deslocava
periodicamente. Durante três anos manteve-se essa relação
umbilical, mas os custos e os problemas da sua manutenção
determinaram o seu encerramento definitivo. Corria o ano de 1994.
in
CUSTÓDIO, Jorge, A Máquina a Vapor de Soure. Fundação Belmiro
de Azevedo, 1998