quinta-feira, 3 de abril de 2014

O Edifício Azulejado da Fábrica de Santo António do Vale da Piedade - V. N. de Gaia

É em Vila Nova de Gaia, que sobrevive às intempéries este testemunho do empreendedorismo que tão bom nome deu a esta cidade...
Além de um crime de lesa cultura, temos presente um crime de lesa economia e, acima de tudo um atentado à saúde pública!
O avançado estado de degradação a que este imóvel chegou, coloca em risco a integridade de qualquer transeunte que por aqui vagueie, oferecendo um eminente perigo pela queda de azulejos, telhas, ou num cenário pior... a sua derrocada.
Sendo que esta fábrica foi uma das que mais contribuiu para o conceituado romantismo portuense, não seria injusto dizer que é o mais romântico edifício de todo o Norte, a sua  perda será irreparável, condenando assim mais um marco da nossa história.
Por "amor à camisola" por vezes cometemos algumas loucuras, enfrentamos perigos e ultrapassamos barreiras... nesta aventura repetida em várias etapas,  conseguimos mais um troféu e uma reportagem única, pois quanto sei, ainda ninguém tinha reclamado este prémio...
Como se costuma dizer :"À terceira é de vez"... foi na terceira tentativa de assédio a este prédio que me consegui introduzir, mas não sem antes fazer algumas acrobacias e escalar a fachada, pois o acesso só foi possível com um escadote pela janela do terceiro andar... uma aventura e pêras, na companhia do meu bom amigo JJ.
Pela beleza gráfica do edifício e dos seus espaços, tal como pelo seu passado, não poderia deixar de tentar a "invasão" e desistir uma vez mais, os esforços foram recompensados com um dos melhores momentos destas ruinosas aventuras.
Já conhecia uma parte da história deste fantástico edifício, conhecido por Fábrica de Santo António do Vale da Piedade. Pelas suas singulares características, era uma conquista que há muito cobiçava.
A singela traça que o caracteriza, prende-se pelos alçados serem revestidos de telhas, a fachada completamente forrada por azulejos e os telhões do beiral serem ricamente ornamentos...
Notei-o e fotografei a sua fachada na minha primeira incursão à Invicta Cidade, tendo na altura sido incomodado por um tipo que afirmava ser o seu proprietário, e que tudo fez para me afastar.
Realizavam-se então no edifício vizinho obras de restauro e escavações arqueológicas, que me chamaram a atenção e suscitaram curiosidade.
Por ter sido praticamente "escorraçado" fiquei-lhe a dever uma visita furtiva, que finalmente consegui levar a cabo, o cenário além de magnífico, é aterrador... as águas furtadas ameaçam derrocar a qualquer instante, colocando em perigo não só a integridade deste monumento, como a vida de quem por ali passar.
Tomei a iniciativa de enviar as imagens recolhidas para a CM de Gaia, que prometeu intervir nesta perigosa situação de lesa património, que exigirá ao proprietário uma imediata intervenção.
Sei que ao invadir uma propriedade, arrisco-me pelo menos a um processo judicial, no entanto e em nome do património foi uma legítima invasão em que nada nem ninguém prejudiquei, antes pelo contrário, penso ter ajudado a salvar mais um raro exemplar de arquitectura que é uma autêntica jóia, além de salvaguardar a saúde pública e colocando a minha em risco... merecia uma medalha e um louvor de cidadania.
Este prédio embora seja conhecido por ter sido uma fábrica de cerâmica que foi edificada neste terreno, não creio que alguma vez tenha tido alguma actividade industrial. 
 
Porém, foram realizadas escavações numa estrutura adossada, tendo sido encontrados vestígios de uma antiga fábrica de cerâmica.
Segundo a opinião do Prof. Dr. Francisco Queiroz, que é um estudioso deste edifício, por não haver uma coincidência entre a altura dos vãos das escadas e das janelas, é provável que o interior seja posterior  à edificação, e a actual arquitectura seja uma adaptação, ponderando a hipótese de ter sido realmente uma fábrica.
No entanto, sabemos que uma fábrica de cerâmica dispõe de fornos, chaminés e outros atributos, além de se desenvolver no plano horizontal, e não em altura, pelo peso e fragilidade dos objectos que aqui eram produzidos.
Avaliando a tipologia dos seus interiores, sou levado a crer que era aqui que residiam os proprietários ou gerentes, além de outro pessoal de serviço à fábrica. Poderão ter sido também aqui os escritórios ou a área administrativa, mas fábrica, não me parece uma hipótese viável, embora não descarte uma eventual remodelação dos interiores.
Creio que acima de tudo, e sem sombra de dúvidas, este edifício era uma montra dos produtos de ornamentação que eram então aqui fabricados, o que ainda mais o valoriza como propriedade histórica.
O prédio é atravessado por uma grande arcada, que daria acesso à unidade fabril permitindo a entrada e saída de pessoal que ali se dirigia, tal com os produtos e matérias primas. O túnel leva-nos hoje a um outro portão ornamentado por um painel de azulejos que denuncia a Vivenda Bela Vista, onde já não me aventurei, por ser habitada.
Por um passadiço, acede-se ao quarto andar e água furtada, que além de uma fabulosa vista, oferece perigos vários pela podridão dos soalhos e tectos.
A escada que o liga aos andares inferiores está quase a ruir, pelo que não arrisquei descer, pois o material fotográfico é frágil e caro, e ser-me-ia difícil prescindir dele para continuar este nosso projecto.
Encontram-se aqui vários vestígios de ocupação e de vandalismo recente, entre restos de materiais furtados e de grafitis selvagens, além da desolação instalada que se verifica em cada assoalhada...
A qualidade dos andares evolui no sentido ascendente, sendo os primeiros bastante mais pobres nos seus cómodos, dividindo-se os dois primeiros em frente e traseira, com pequenas divisões e espartanas instalações.
O primeiro andar é o mais humilde e foi possivelmente habitado por serviçais. Os vestígios deixados, permitem avaliar um baixo nível de vida em contraste com o dos pisos superiores.
O segundo piso deste prédio, embora seja mais generoso que o anterior, fica ainda muito aquém dos imediatamente superiores. 
 
As cores garridas de cada cómodo, são características de um período do século XX em que a decoração passava por nomear as assoalhadas pelas berrantes matizes com que eram pintadas.
O terceiro e quarto andar, sendo este último, servido com mansarda, além da vista que oferecem, são amplos e com melhores acabamentos e, mais dignos da classe "capitalista" desta gloriosa fábrica. 
 
As paredes eram revestidas com papel, que pelos padrões das sua época lhes davam um charme burguês.
Os requintados tectos do terceiro andar, tal como a amplitude das suas divisões, tornam este espaço na "ala nobre" deste empreendimento, sugerindo que tenha sido utilizado pela administração.
 
Este edifício foi recentemente adquirido por uma sociedade imobiliária, e tem aprovado há três anos um projecto de reabilitação, no entanto, a crise imobiliária fez recuar os investidores, que aguardam uma melhor oportunidade para levar avante e a bom porto esta grande empreitada.
Mas debrucemos-nos agora sobre a história desta fábrica, que tanto contribuiu para embelezar o País com as suas elaboradas cerâmicas, e levou o seu bom nome além fronteiras, concorrendo com as suas congéneres europeias.
Para tal, tive a sorte de contar com a colaboração deste nosso bom amigo, Prof. Dr. Francisco Queiroz , um historiador de rara craveira, que gentilmente me cedeu um extraordinário texto fruto da sua investigação, poupando-me um trabalhão e acelerando esta reportagem.

O EDIFÍCIO AZULEJADO DA FÁBRICA DE SANTO ANTÓNIO DO VALE DA PIEDADE

Junto ao Rio Douro, subsiste ainda um dos edifícios da antiga Fábrica de Santo António do Vale da Piedade – precisamente o mais emblemático, embora em ruína muito acelerada.
A Fábrica de Santo António do Vale da Piedade laborava já desde finais do século XVIII, sendo propriedade do Vice-Cônsul da Sardenha no Porto, Jerónimo Rossi, falecido em 1821. Contudo, o edifício objecto desta análise ainda não existia na altura.
No início da década de 1830, a Fábrica de Santo António do Vale da Piedade estava a laborar debaixo da supervisão de Francisco da Rocha Soares, que então dirigia também a Fábrica de Miragaia e que chegou ainda a explorar, sensivelmente por essa altura, a Fábrica de Louça de Massarelos.
A partir da segunda metade da década de 1830, a Fábrica de Santo António do Vale da Piedade passa a andar arrendada a Bonifácio José de Faria e Costa e a João de Araújo Lima. 
 
Contudo, o primeiro dos dois sócios morre em 1840. A partir de então, João de Araújo Lima passa a ter toda a responsabilidade sobre a exploração da fábrica, num período relativamente alargado, que termina com a sua morte, em 1861.
Durante o período em que João de Araújo Lima explorou a fábrica, esta aumentou a gama de produção. 
 
Assim, a fábrica não só produzia louça, como passou também a produzir estatuária, vasos e azulejos. Nessa altura, a Fábrica de Santo António do Vale da Piedade teve certa projecção, em Portugal e no Brasil, ao nível da produção de ornamentação cerâmica para exteriores. 
Terá sido a mais importante fábrica do género, no norte do país, durante as décadas de 1850 e 1860. Ao nível da produção de estatuária e artefactos de remate, terá mesmo sido a principal fábrica portuguesa, durante esse período.
Instalada bem perto do Rio Douro, a Fábrica de Santo António do Vale da Piedade dissimulava-se então por detrás de um prédio de vários andares – precisamente aquele que aqui analisamos. 
 
Semelhante a muitos outros prédios que existiam no centro da cidade do Porto, este prédio destacava-se pelos seus revestimentos cerâmicos e por ser o mais alto dos que avultavam no local. 
 
Embora todas funções do edifício em causa, ao longo da história da fábrica, careçam ainda de explicação detalhada, a sua cércea inusitada dever-se-á ao facto de, a partir de 1846, a fábrica ter deixado de funcionar em regime de arrendamento. 
 
Paralelamente, o proprietário passou a usufruir de uma frente muito estreita à face da rua, pelo que o edifício principal da fábrica, onde terá existido a função de habitação e, eventualmente, escritório, teve de se desenvolver verticalmente, posicionando-se sobre a serventia para a fábrica, por onde entravam as matérias-primas e saíam os produtos cerâmicos. 
 
Portanto, o edifício em causa terá sido erguido em finais da década de 1840. Porém, a decoração cerâmica que nele se vê pode ser vários anos posterior.
Após a morte de João de Araújo Lima, a Fábrica de Santo António do Vale da Piedade ficou em posse da sua viúva. 
 
Poucos anos depois, a gestão da fábrica passaria logo para dois irmãos da primeira mulher de João de Araújo Lima, um dos quais – João do Rio Júnior – viria a assumir o protagonismo, devido à morte do outro irmão. Debaixo da gerência de João do Rio Júnior, a fábrica é dotada de uma máquina a vapor.
Em meados da década de 1870, a produção já se alargara a louça sanitária, louça de grés e tubos do mesmo material. 
 
Logo de seguida, passou a fábrica a ser gerida por Manuel Alves Ferreira Pinto, através de arrendamento.
 
A fábrica ainda foi premiada na Exposição de Filadélfia de 1876, e na Exposição Universal de Paris de 1878. 
 
Porém, a concorrência da Fábrica de Cerâmica das Devesas fez com que Santo António do Vale da Piedade deixasse de ter a primazia na produção de artefactos cerâmicos para decoração arquitectónica.
Em 1882, Manuel Alves Ferreira Pinto declarou falência. Iniciava-se a curva descendente da Fábrica de Santo António do Vale da Piedade. 
 
Embora o declínio não tenha sido imediato, esta fábrica já no período Arte Nova havia sido relegada para a sombra, dado que foram outras as fábricas que singraram, na viragem para o século XX. Aliás, em finais do século XIX, já a Fábrica de Santo António do Vale da Piedade tinha deixado de produzir artefactos em grés, precisamente por não poder competir com a Fábrica de Cerâmica das Devesas (DOMINGUES, 2009: I, 168-180 / 437-448). 
 
A fábrica vegetou nas primeiras décadas do século XX, acabando por fechar. Os edifícios fabris propriamente ditos já não existem. 
 
O edifício de habitação que aqui analisamos é o único que resta, e possui uma espécie de mostruário informal de azulejo, assim como diversos tipos de telhas decoradas, produzidas precisamente nesta fábrica, conjunto único em todo o mundo.
Bibliografia:

- QUEIROZ, José Francisco Ferreira / TEIXEIRA, José Guilherme Brochado - Os mostruários da Fábrica de Santo António do Vale da Piedade. Comunicação apresentada no II Congresso "O Porto Romântico", Porto, Universidade Católica, Abril de 2014.

- DOMINGUES, Ana Margarida Portela – A ornamentação cerâmica na arquitectura do Romantismo em Portugal. Tese de Doutoramento em História da Arte apresentada à Faculdade de Letras da Universidade do Porto em 2009.

- LEÃO, Manuel – A cerâmica em Vila Nova de Gaia. Vila Nova de Gaia: Fundação Manuel Leão, 1999.

- SOEIRO, Teresa / ALVES, Jorge Fernandes / LACERDA, Silvestre / OLIVEIRA, Joaquim – A cerâmica portuense. Evolução empresarial e estruturas edificadas. Gaia: Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia, 1995.

- VALENTE, Vasco – Uma dinastia de ceramistas. Elementos para a história das fábricas de loiça de Massarelos, Miragaia, Cavaquinho e Santo António do Vale de Piedade. Porto: Imprensa Moderna, 1936.

- LEÃO, Manuel – Jerónimo Rossi. Apontamentos. In "Boletim da Associação Cultural Amigos de Gaia", n.º 57, Dezembro de 2003, p. 30-32.

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