sábado, 11 de junho de 2011

A.C. da Cunha Morais - Fábrica de Fitas e Fiação de Algodão - Crestuma

Desde o século XVIII que Crestuma era uma espécie de "Meca" industrial onde laboraram várias fábricas, ouvi falar em autênticos monumentos da era industrial e preparei um périplo, decerto encontraria muita lenha para me queimar... 
Afinal as expectativas foram excedidas quer nos monumentos que visitei, quer nas histórias que "desenterrei", para não falar na quantidade de fotogénicas oportunidades que com que me deparei...
Hei-de lá voltar, com mais tempo e melhores condições técnicas, pois deixei ainda muito por fazer...
Há já algum tempo que estava para visitar Crestuma, na periferia da invicta cidade ... tinha ouvido falar numa antiga fábrica de fiação que merecia pela sua história e arquitectura a visita do Ruin'Arte.
Acabei por encontrar uma outra fábrica de fiação, a A.C. da Cunha Morais - Fábrica de Fitas e Fiação de Algodão.
Que não só pela sua história e arquitectura, mas essencialmente pelos vestígios que se encontram em cada canto desta desgraçada estrutura, a tornaram muito mais interessante.
A quantidade de elementos que ainda estão presentes, dão um ambiente ainda mais romântico a este cenário carregado de memórias, que nos deixa imaginar todo o quotidiano que ali se vivia...
Senti-me como Lord Carnarvon a entrar no túmulo de Tutankamon... esta aventura está para os "ruinólogos" como as escavações de Pompeia estão para os arqueólogos, um autêntico paraíso...
Com os evidentes sinais do tempo, que contrastam com os tempos áureos e a sua triste realidade, esta fábrica é um manancial de memórias pessoais e colectivas de muitas gerações que aqui passaram e deixaram as suas marcas.
É um núcleo arquitectónico de vários edifícios que no seu conjunto proporcionam várias reportagens e todos merecem a devida atenção.
A história desta fábrica remonta ao ano de 1790, onde estava instalada a Fábrica de Verguinha e Arcos de Ferro de Crestuma, que pertencia à Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro .
Ali se fabricava essencialmente e para dar apoio à indústria vinícola, arcos de ferro para pipas e tonéis, sabe-se também que a fundição produziu em tempos objectos utilitários, maquinismos para outras indústrias e até mesmo munições, que forneceram o exército de D. Miguel, o que veio mais tarde a prejudicar o destino desta fábrica.
 Em 1825, empregava cerca de 40 almas era uma fundição equipada com a mais avançada tecnologia e dispunha de maquinismos onde ensaiavam técnicas que a colocariam na vanguarda da produção metalúrgica.
Com a derrota das tropas de D. Miguel em 1833, por motivos políticos ligados aos seus proprietários começou o seu declínio, estava então condenada.
 A sua estrutura foi então assediada pela  Primeira Associação De Indústria Fabril Portuense que pretendia dar continuidade aos antigos projectos.
No entanto o negócio não se concretizou e a exploração nunca mais foi revitalizada pelos donos originais.
Num cenário sócio económico de crise, as dívidas dessa empresa acumularam-se, a fábrica foi finalmente vendida em 1853 e convertida numa fiação
Comecei a visita por um pavilhão que foi um armazém de matéria prima, um espaço sustentado por várias colunas onde ainda restam no chão alguns fardos de algodão iluminados por um radiante sol, que nos transmitem o conforto de uma nuvem e que parece convidar-nos a descansar...
Segui para a tinturaria que me pareceu ser a estrutura mais antiga deste complexo...
... foi palco de inúmeras operações conforme se pode perceber pela sua dimensão e equipamentos, e onde se processavam várias das etapas de fabrico.
 
O laboratório onde se criavam as cores que animariam os novelos saídos daquele espaço, conserva ainda todo o ambiente de trabalho que estes locais exigem, a rigorosa organização dos pigmentos, dos livros e estantes, do mobiliário...
 É mais um espaço fossilizado que  lentamente se consome pelo tempo...
Os tanques que se encheram de garridas tintas estão agora vazios, o guindaste que cumpria a tarefa levar a sua carga a bom porto há muito que parou, o exausto secador e os fartos fardos são os últimos testemunhos que com toda a eloquência nos contam histórias de trabalho e prosperidade...
Ao entrar no edifício principal segui a "linha de montagem" deste complexo fabril, onde estavam as dobadoras e uma enorme caldeira, não faço ideia como seria o processo, mas certamente seria aqui o início da fiação.
 
As seguintes salas, embora sem vivalma continuam  equipadas como se ali trabalhasse um batalhão de fantasmas... 
Amontoam-se cilindros que deveriam ter contido muitos quilómetros de fio e acabariam por ser reduzidos a novelos e carrinhos de linha...

... são incontáveis os vestígios deixados e empilhados como se ainda esperassem por ser manuseados.
Noutra sala, há inúmeras máquinas, peças soltas, mobiliário, estantes ainda intactas, e muitas memórias espalhadas aos quatro ventos... qualquer amante de arqueologia industrial sentir-se-ia  como uma criança num quarto de brinquedos ao entrar nestas alas...
Na continuação deste percurso entrei num dos mais interessantes pavilhões, infelizmente o telhado há muito que ruiu tendo soterrado toda a maquinaria aqui se encontra, são máquinas de fiação e dobagem da era industrial que qualquer museu gostaria de exibir...
 
Como um mal nunca vem só, todo o peso causado pelo dito telhado fez abater o chão levando consigo parte deste magnífico espólio... 
 
...embora fosse o local que melhores imagens me poderia ter dado, não quis  ir mais longe pela instabilidade do soalho... estava só e seria bastante arriscado, estes locais podem ser perigosos e nada vale mais do que a integridade da minha câmera...
 
Continuei o caminho e segui para os escritórios da administração, foi outro dos momentos altos desta aventura... este departamento está ainda repleto com todos os documentos, livros de balanço, fichas de empregados, pagamentos, fiscalidade e tudo mais que aqui se tratava...
Parece um misto de mausoléu e escritório, onde todas as respostas para esta hecatombe se poderiam encontrar... por respeito não toquei em nada e aproveitei todas as composições espontâneas para enriquecer esta reportagem...
 
Todos estes papéis deveriam estar guardados e protegidos, são um  riquíssimo património enquanto se mantiverem juntos, contam a vida desta fábrica e de todo o seu pessoal, desde a sua fundação como A.C. da Cunha Morais... é imoral o que aqui aconteceu...
Todas as outras alas desta enorme fábrica foram espoliadas aquando a sua dissolução, o que deixa um grande vazio em todos os sentidos... até que inesperadamente encontrei três colegas "ruinólogos" com que troquei umas amigáveis palavras e bons conselhos, o que sem dúvida animou esta aventura...
Esta unidade industrial, já em 1928 dispunha de uma central de reserva de energia eléctrica que recebia da UEP 100 Kw de potência, que foi substituída em 1934 por outra de 140Kw e chegou a atingir os 148Kw... a sua importância económica e social permitiu-lhe fazer emissões de cédulas para fazer face à escassez de moeda durante os conturbados tempos da primeira república, são hoje objectos de coleccionismo que atingem respeitados valores.
E a visita seguiu para o chalet do engenheiro, anteriormente conhecido como Quinta da Estrela, foi projectada para ser uma fábrica de balões e mais tarde adaptada para residência, o seu projecto é anterior ao do edifício principal, que foi traçado tal como os jardins pelo fundador desta empresa.
É mais um local impregnado de nostalgia onde restam algumas memórias em forma de mobiliário e documentos dispersos pelo chão, uma vez mais se encontram ainda objectos que terão sido deixados pelos últimos locatários.
O romantismo desta casa é transposto não só pelo seu estilo e inserção neste núcleo, como também pelos vestígios que ainda dão vida a estas paredes.
Aqui viveu Ângelo Mendonça da Cunha Morais, nascido em Luanda no ano de 1897 filho de Joaquim Augusto da Cunha de Morais, um eminente fotógrafo. Herdou do fundador e seu tio, Augusto César da Cunha Morais, os destinos desta fábrica, que por falta de descendência o incumbiu de a gerir.
Ângelo era um homem de craveira intelectual com vocação para filósofo e teve de se fazer engenheiro por exigências familiares, mas nem assim se desviou do seu caminho. Paralelamente ao curso de engenharia, formou-se também em filosofia à revelia dos seus pais.
Considerando-se um republicano de esquerda embora sem filiação partidária seguiu a facção de Afonso Costa e conspirou contra o governo de Sidónio Pais.
Após exaustivas buscas a todos os conspiradores, aqui foram encontrados envólcros de bombas que incriminaram este nosso amigo, o que lhe valeu ser perseguido e preso.
Consta que nesta fábrica existem passagens secretas e esconderijos que o albergaram e a outros foragidos.
Impulsionado por Leonardo Coimbra, seu grande mentor, faz-se rodear por um circulo de amigos que o leva em busca de uma verdade suprema.
Ingressa numa loja maçónica e torna-se antideísta, chegando a abordar o espiritismo como forma de alcançar o conhecimento profundo do espirito humano.
Em 1923 chega a ocupar por um curto espaço de tempo, o cargo de presidente de Vila Nova de Gaia. Foi presidente da Secção Algodoeira da Associação Industrial Portuense entre 1930/44.
Representou a industria portuguesa do algodão em vários congressos internacionais e foi vogal da Comissão Reguladora do Comércio de Algodão. Mais tarde foi conselheiro de Salazar nos assuntos referentes a esta industria, chegando mesmo a ser convidado a integrar a Câmara Corporativa do estado Novo, embora tivesse declinado.
Já nos anos 60 e à semelhança do seu mestre Leonardo Coimbra, converteu-se ao cristianismo, vindo a falecer em Crestuma no ano de 1968.
Mas a história desta fábrica continuou até 2007, ano em que foi requeria  a sua insolvência por dívidas acumuladas à Segurança  Social, entre outros credores.... ditando assim o fim de mais de dois séculos de história industrial...

LinkWithin

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...