segunda-feira, 16 de setembro de 2013

A Fábrica de Cerâmica das Devezas – Vila Nova de Gaia

EM DEFESA DAS DEVEZAS
A devassada Fábrica de Cerâmica das Devezas, é mais reportagem que há muito estava a marinar no meu disco duro. Pela envergadura das instalações, e pela sua história, esta reportagem obrigava a um enorme esforço e inspiração, que nem sempre se conjugam na devida quantidade e qualidade tendo sido por isso adiada. Consegui finalmente reunir com a ajuda de bons amigos, as condições necessárias para a sua publicação.
O levantamento fotográfico, foi feito em duas ocasiões com perto de ano e meio de intervalo, onde as diferenças de degradação e vandalismo são bastante acentuadas, servindo este post de alerta para a urgente preservação deste monumental espaço, e do que resta do seu acervo.
Esta fábrica é um museu ainda vivo, e guardião da história da arquitectura do período romântico e moderno, onde ainda se conserva parte do seu espoliado espólio. As Devezas são uma espécie de "banco de células estaminais" de maioria dos edifícios portugueses dos séculos XIX e XX.
Aqui foram fabricados  a maior parte da estatuária, azulejaria, tijolos e telhas , utilizados durante várias décadas na construção de muitos dos edifícios em solo nacional e até além fronteiras.... Puro ADN urbano, em vias de se perder para sempre...
Aventurei-me sozinho na primeira incursão e durante as últimas horas do dia, pelo que não terminei a reportagem por falta de luz. Na segunda vez, aproveitei a boa companhia do José João Roseira, que teima em aparecer ao bom estilo do Wally, e animando ainda mais este trabalho, nesta ocasião foi também a estreia do Joaquim no seu novo emprego... terá ainda que comer muita ração para atingir o nível de profissionalismo do Edgar, mas para já adivinha-se a promissora carreira deste lindo "sacanideo"...
O aproveitamento destas instalações, quer para núcleo museológico, ou qualquer outra actividade que pudesse dinamizar a economia, cultura e sociedade seria a sua salvação. Uma vez que a índole deste edifício foi durante muitos anos virada para a construção creio que se aqui se fizesse uma UNIVERSIDADE DE REABILITAÇÃO URBANA, continuar-se-ia uma feliz epopeia que a todos faz falta... os moldes que ainda existem são os originais e poder-se-ia reabilitar com dignidade muitos ruinosos candidatos a este nosso projecto, além de que garantiria uma enorme quantidade de empregos, presentes e futuros... seria a primeira pedra de um projecto de reabilitação a nível nacional.
Pela proximidade de uma das mais arruinadas cidades do País, pela facilidade de acessos e espaço envolvente, além das condições naturais desta fábrica, aqui se poderia fundar e instalar um novo pólo que preencheria uma lacuna institucional... sei que daria muito trabalho, mas daria também  resultados quase imediatos...  começando os trabalhos pela própria salvaguarda e reestruturação, continuando os trabalhos académicos com a reabilitação do património público, poder-se-ia também resolver muitos problemas crónicos, além de se poupar um grande fatia do orçamento do estado... por fim, os alunos entrariam num mercado onde não falta trabalho a mão-de-obra qualificada.
Não sendo eu académico na arte de bem falar em espaços industriais, e pela quantidade e qualidade de informação que este post requer, pedi a colaboração de profissionais consagrados  para assumir essa responsabilidade, pelo que fui autorizado a utilizar o melhor texto jamais escrito sobre esta defunta unidade fabril... aqui vos deixo um fantástico e completíssimo trabalho, que muitos neurónios me poupou e muitas emoções me trouxe.
O resultado de anos de investigação sobre este antigo complexo industrial de fundação oitocentista permitiu esclarecer, de forma cabal, a enorme importância de António Almeida da Costa – fundador deste complexo – e do seu amigo, colaborador e sócio, José Joaquim Teixeira Lopes, na projecção das Artes Industriais em Portugal, no século XIX, até porque a dinâmica que o primeiro imprimiu a esta actividade ultrapassou a mera contribuição capitalista (aspecto mais conhecido e revelado da sua biografia), devido à formação artística que precedeu a sua actividade industrial.
Ora, ao verificarmos a elevadíssima importância histórica e artística da antiga Fábrica de Cerâmica das Devezas - mesmo em termos internacionais - e a negligência e burocracia com que tem sido conduzido o seu processo de classificação patrimonial, cumpre-nos o duplo papel de divulgar um pouco da história e valor deste complexo industrial, assim como dar a conhecer a forma como tem sido conduzido o processo da sua salvaguarda.
    BREVE NOTA HISTÓRICA SOBRE O COMPLEXO INDUSTRIAL DAS DEVESAS

Os primeiros anos da actividade de António Almeida da Costa foram passados numa oficina de mármores que o mesmo havia fundado na antiga Rua do Laranjal (Porto), em finais da década de 1850, a qual alcançou rapidamente um bom nome na área. Porém, quem era António Almeida da Costa?
António Almeida da Costa, tal como outros canteiros instalados no Porto no fim da década de 1850 e no início da década de 1860, tinha as suas raízes na região de Lisboa, nomeadamente em S. Vicente de Alcabideche (concelho de Cascais). António Almeida da Costa era afilhado, sobrinho e filho de canteiros, sendo que três dos seus irmãos – Francisco, José e Joaquim – viriam também a ser canteiros. O pai de António Almeida da Costa – José da Costa – integrou a obra do Palácio Nacional da Ajuda (Lisboa). Num concelho como o de Cascais, polvilhado de boas pedreiras activas, teriam de existir bastantes canteiros. 
 
Aliás, S. Domingos de Rana foi o berço de vários outros canteiros oitocentistas, nomeadamente das duas maiores e mais importantes famílias de canteiros oitocentistas da região de Lisboa: os Sales e os Moreira Rato. Julgamos assim estar parcialmente explicado o facto de António Almeida da Costa ter sido inicialmente canteiro. Não só pertencia a uma família de canteiros, estando por isso, desde muito cedo, ambientado com esta arte, como o local onde nasceu a isso propiciava. Porém, António Almeida da Costa, para além de ter dado continuidade ao ofício dos ascendentes familiares, tal como os seus irmãos, foi também aquele que mais se destacou na área e que mais ganhou preponderância noutras áreas artísticas que não a cantaria.
A juventude de António Almeida da Costa

Para a época anterior à vinda de António Almeida da Costa para o Porto, a sua biografia é ainda obscura. Contudo, pelo que conhecemos da sua obra posterior, e pelos dados acima referidos, terá certamente adquirido a sua formação inicial de canteiro na região de Lisboa. Mais tarde, integrou a oficina portuense de Emídio Carlos Amatucci, o que terá feito no início da década de 1850.
António Almeida da Costa terá vindo para o Porto à procura de melhores oportunidades na sua arte, já que a burguesia endinheirada da cidade cada vez mais recorria ao material pétreo em moda na capital lisboeta – o mármore – para nobilitar os seus monumentos tumulares. Note-se que, no primeiro ano lectivo de 1854-1855 da Escola Industrial do Porto, apenas seis canteiros estavam inscritos, enquanto que, no mesmo ano lectivo, contavam-se treze canteiros no Instituto Industrial de Lisboa.
 
Em Lisboa, existiam muitas mais oficinas de cantaria, dada a maior procura nessa área. Face a esta maior oferta de canteiros em Lisboa, António Almeida da Costa também poderá ter decidido ir para um local onde o mercado dos mármores estava ainda por explorar devidamente.
A formação artística de António Almeida da Costa na Escola Industrial do Porto

Se António Almeida da Costa chegou da região de Lisboa já formado como canteiro, estamos certos que veio ainda aprender bastante com Emídio Amatucci, dada a qualidade artística deste último. Porém, a influência deste exímio escultor ornatista sobre António Almeida da Costa, não se limitou ao contacto oficinal. Em 24 de Outubro de 1854, naquele que foi o primeiro ano lectivo da Escola Industrial do Porto, António Almeida da Costa, contando 21 anos, matriculou-se em Geometria e Ornato. Foi o único canteiro, nesse ano, a fazer exame e a obter aprovação na cadeira de Ornato.
 
Ora, a maior parte dos alunos que frequentava a Escola Industrial do Porto não podiam ser assíduos às aulas e não chegavam sequer a ir a exame. Muitos alunos matriculavam-se anos seguidos na mesma cadeira, sem nunca a concluírem. Para ter concluído a cadeira de Ornato com aprovação, logo nesse ano, António Almeida da Costa, ou teria talento para a área, ou então teve de se esforçar bastante, pois não era fácil estudar de noite e trabalhar de dia, com horários de laboração bem mais alargados do que hoje. Este facto torna-se muito importante, porque é um dos primeiros indicadores de como António Almeida da Costa, desde logo, procurou obter as ferramentas necessárias para um futuro êxito profissional.
Assim, António Almeida da Costa terá tido uma tripla formação: a aprendizagem inicial do ofício de canteiro na região de Lisboa, um tirocínio com Emídio Amatucci e uma formação escolar que lhe permitiu o acesso a outro tipo de informação visual e um maior contacto com outros artistas industriais. Esta tripla formação será visível em toda a sua obra, sobretudo nos seus primeiros anos com oficina própria.
A abertura da oficina de mármores

António Almeida da Costa terá permanecido na oficina de Emídio Amatucci cerca de seis ou sete anos. Emídio Amatucci foi até uma das testemunhas do seu casamento com Emília de Jesus Maria, em 1855. Porém, já casado e com uma formação escolar aplicada concluída, não demorou muito tempo até que António Almeida da Costa se desvinculasse de Emídio Amatucci, para abrir a sua própria oficina, uma vez que o mercado dos mármores estava em franco crescimento no Porto.
 
Em 1858, António Almeida da Costa anunciava num jornal que acabava de se estabelecer na Rua do Laranjal, n.º 68, onde se prontificava a fazer todo o tipo de obras em mármore e granito com a maior presteza e esmero por preços cómodos e razoáveis.
 
É interessante notar que António Almeida da Costa não pretendia dedicar-se tão só ao mármore, mas alargar o leque de oferta para outros tipos de pedra, facto que seria típico do seu percurso oficinal e que lhe permitiu igualmente o sucesso no negócio.
Na primeira fase da sua vida oficinal, António Almeida da Costa terá realizado sobretudo obras de monumentos sepulcrais. É possível atribuir, aos primeiros três ou quatro anos da sua oficina, mausoléus no Cemitério da Lapa (Porto), no Cemitério do Prado do Repouso (Porto), no Cemitério de Chaves, no Cemitério de Valongo (região do Porto) e no Cemitério de Ovar (região de Aveiro). Algumas obras foram encomendadas por eminentes figuras da sociedade, ou por prestigiadas instituições do Porto, as quais lançaram António Almeida da Costa como mais um dos protagonistas da cena artística portuense. Exemplos disso são a encomenda, por parte Misericórdia do Porto, em 1860-1862, de quatro bustos de importantes benfeitores, e a capela do Visconde de Pereira Machado, no Cemitério da Lapa, executada em 1861.
Graças ao muito estudo já carreado, conclui-se facilmente um facto importante para percebermos a personalidade de António Almeida da Costa: este artista adaptava-se a qualquer tipo de obra e de material, bem como recorria, quer a soluções já utilizadas pela sua oficina mestra (de Emídio Amatucci), quer a soluções inovadoras, mantendo sempre um equilíbrio estético entre ambas.
Por estas razões, António Almeida da Costa viria a liderar o mercado de monumentos sepulcrais em pedra mármore no Porto, durante a década de 1880. A sua crescente concentração fabril horizontal e o auxílio de José Joaquim Teixeira Lopes na modelação, consolidaram cada vez mais a sua posição como o melhor canteiro do Porto.
Ao contrário do que se supunha até meados da década de 1990, António Almeida da Costa e José Joaquim Teixeira Lopes já colaboravam, antes da fundação da Fábrica de Cerâmica das Devezas, sendo o caso do monumento a D. Pedro V disso paradigmático. Aliás, António Almeida da Costa foi um dos principais responsáveis pela saída de José Joaquim Teixeira Lopes do anonimato artístico.
A fundação da Fábrica de Cerâmica das Devezas

Ainda hoje existem algumas dúvidas quanto à forma como foi fundada esta fábrica de cerâmica. A bibliografia mais antiga sobre o assunto não só hipertrofia o papel de António Almeida da Costa como seu mero mentor industrial, como também refere que António Almeida da Costa terá entrado na sociedade a posteriori, atribuindo a José Joaquim Teixeira Lopes toda a responsabilidade artística, assim como o papel de ideólogo inicial da fábrica. Porém, a realidade não terá sido exactamente essa.
Não encontrámos qualquer documentação que confirmasse a data oficial de 1865, como a da fundação. Encontrámos, sim, referência a algumas das sociedades onde António Almeida da Costa esteve envolvido. Entre Junho de 1864 e Maio de 1866, António Almeida da Costa esteve associado a João Bernardo de Almeida, com o fim de produzirem e venderem cal. Estavam já instalados em parte do que viria a ser o quarteirão norte da Fábrica de Cerâmica das Devezas. No mesmo dia da dissolução dessa sociedade, António Almeida da Costa adquire a parte de João Bernardo de Almeida e este último adquire de prazo um terreno ao lado, no mesmo quarteirão norte. Ora, passados dois meses, em finais de Julho de 1866, António Almeida da Costa obtêm de prazo mais terrenos no quarteirão norte, sendo que este passa a estar todo nas suas mãos, com excepção de uma parcela no centro desse mesmo quarteirão, então de João Bernardo de Almeida.
A próxima sociedade a ser constituída – sob a firma Costa & Breda – tinha por fim a produção e comercialização de materiais de construção, nomeadamente telha. Existiu entre Julho de 1867 e Março de 1870. Durando um pouco menos tempo – de Dezembro de 1867 a Março de 1870 – a sociedade Costa, Breda & Teixeira Lopes dedicava-se em simultâneo (e no mesmo local) à produção artística, contando com o talento de José Joaquim Teixeira Lopes.
Quatro meses após a dissolução da sociedade entre António Almeida da Costa, Bernardo José da Costa Soares Breda e José Joaquim Teixeira Lopes, em Julho de 1870, António Almeida da Costa legaliza o seu estabelecimento fabril de obras artísticas em cerâmica, situado no quarteirão a norte da Rua Conselheiro Veloso da Cruz.
Uma nova sociedade surge em Julho de 1874, entre António Almeida da Costa, José Joaquim Teixeira Lopes e Feliciano Rodrigues da Rocha (conterrâneo de António Almeida da Costa, canteiro e seu antigo colaborador), sociedade esta que se prolonga até Fevereiro de 1880 e à qual competia dirigir, quer o estabelecimento nas Devezas quer a oficina de mármores no Porto. No mesmo ano de 1880, António Almeida da Costa constituiu-se em sociedade com Feliciano Rodrigues da Rocha, com o fim de dirigir apenas a oficina de mármores. Esta sociedade prolonga-se até 1903.
No mesmo dia da escritura de Julho de 1874, António Almeida da Costa e sua mulher, Emília de Jesus Costa, arrendam à sociedade os terrenos e a fábrica das Devezas que ficavam do lado norte, assim como um barracão a sul e terrenos contíguos. Ora, mesmo sem provas documentais inequívocas, deduz-se que António Almeida da Costa já teria alguns direitos sobre estes terrenos no quarteirão sul desde, pelo menos, Abril de 1869 - data em que o seu sogro Silvestre de Macedo, do Porto, comprou aí terrenos.
De uma forma bastante resumida, pudemos demonstrar que António Almeida da Costa teve um papel bem mais relevante na constituição da Fábrica de Cerâmica das Devezas do que aquele que se supunha até meados da década de 1990.
Razões do sucesso do complexo fabril das Devesas

O complexo industrial das Devezas foi, numa primeira fase, uma extensão da oficina de cantarias da antiga Rua do Laranjal. Por exemplo, várias capelas funerárias construídas na oficina eram ornadas com vasos em cerâmica saídos da fábrica. Porém, se ao princípio as esculturas ou vasos eram feitos em cantaria, foram sendo produzidos, progressivamente, em cerâmica, uma vez que tal processo possibilitava a produção em larga escala.
A partir da criação da secção de fundição no seu complexo fabril, entre 1881 e 1884, António Almeida da Costa passou a ser o único industrial do Porto com capacidade para construir uma capela sepulcral com acessórios inteiramente produzidos nas suas oficinas.
Esta passava a ser uma grande vantagem de António Almeida da Costa relativamente aos seus concorrentes, pois todas as oficinas do seu complexo fabril promoviam-se mutuamente, funcionando como uma concentração horizontal – a primeira e a maior que alguma vez existiu em Portugal em termos de artes industriais.
O esquema de concentração fabril produziu os seus frutos, permitindo a Almeida Costa amealhar uma bela fortuna e afirmar o seu empreendimento como um dos mais bem sucedidos da Península Ibérica. Porém, não foi apenas a estratégia de concentração empresarial um dos seus grandes méritos, mas também os seguintes factores: a associação entre a arte e a indústria; a habilidade empresarial; a boa qualidade do equipamento industrial e o bom aproveitamento do caminho de ferro.
 (Primeira imagem da segunda reportagem)
Apesar de António Almeida da Costa contar com mestres de elevada qualidade artística e de excelente capacidade técnica nas suas oficinas – como o ceramista João José da Fonseca – não descurou a formação dos seus empregados em desenho aplicado à indústria. Para isso, possuía uma escola de desenho e modelação nas instalações da própria fábrica. Se, por um lado, havia bons artífices na Fábrica de Cerâmica das Devesas, desenhadores e modeladores; por outro, também os modelos para os produtos eram muito bons e variados, até porque António Almeida da Costa compreendia perfeitamente que só assim a fábrica poderia distinguir-se das restantes. 
Ora, muitos destes modelos passaram à pedra, à cerâmica ou ao ferro, constando igualmente nos catálogos feitos para o grande público. No catálogo de 1910, aparecem para cima de mil peças: bustos, estátuas, grupos, louça sanitária, estuques, materiais de construção, artigos em grés, canalizações, mosaico hidráulico, azulejo, serralharia, fundição e cantarias. Para além de tudo isto, a Fábrica de Cerâmica das Devezas fabricava qualquer tipo de peça nas áreas supramencionadas. 
De facto, ao longo de toda a sua actividade, António Almeida da Costa procurou adaptar-se sempre ao gosto dos encomendadores, tornando-se evidente a sua versatilidade.
Os catálogos da Fábrica das Devezas serviam, pois, como forma de publicitar a sua produção. Porém, a publicidade também se baseou na presença em exposições nacionais e internacionais, onde a fábrica obteve várias medalhas e elogios, nomeadamente uma medalha de prata na célebre Exposição Universal de Paris, em 1900.
Em 1899, deu-se início à construção de um magnífico edifício neomourisco que servia de depósito e exposição de produtos no Porto (na actual Rua José Falcão, com frente para a Rua da Conceição). Os edifícios das Devezas foram também reformados e ornados no início do século XX, levando numerosas peças cerâmicas saídas da fábrica, que funcionavam como um verdadeiro mostruário ao ar livre. O bairro operário tinha também as casas completamente revestidas de azulejos, todos de padrões diferentes, como ainda hoje se pode ver.
Desde o início que António Almeida da Costa demonstrou ser um homem polivalente, dedicando-se a diversas áreas: ao desenho, à modelação e à execução de obras. Além disso, tomava facilmente de empreitada construções de qualquer carácter, mesmo em áreas artísticas onde não possuía experiência. A sua habilidade e perspicácia empresarial também o levaram mais longe, ao permitirem que produzisse aquilo que o mercado queria, antes que outros o fizessem. Exemplo disso mesmo foi a sua aposta na telha de Marselha, sendo que até a terá chegado a produzir com melhores resultados do que a original. Adaptou-se facilmente às mudanças de gosto e também soube utilizar muito bem a publicidade, com uma estratégia comercial agressiva mas convincente.
Para que todo este esquema funcionasse, António Almeida da Costa implementou um eficaz sistema de escoamento dos produtos, através da instalação da Fábrica das Devezas e de uma sucursal na Pampilhosa do Botão, junto a importantes estações de caminho de ferro. A obtenção de matérias primas baseou-se, em muito, no transporte ferroviário, já que a sucursal na Pampilhosa pretendia ser também um local de recolha de barro, que era facilmente transportado para as Devezas. António Almeida da Costa implementou ainda uma vasta rede de depósitos pelo país, estendendo a sua teia ao Rio de Janeiro e colocando à frente destes depósitos pessoas da sua confiança, como no caso do depósito em Lisboa, entregue ao filho do mestre cerâmico João José da Fonseca – o escultor João Carlos da Fonseca.
A qualidade do equipamento industrial da Fábrica das Devezas era igualmente digna de nota, havendo mesmo algumas máquinas inventadas pelos mestres fabris. Os próprios edifícios fabris não eram excessivamente acanhados, ao contrário do que sucedia com quase todas as indústrias da época.
(O Wally desesperado, procura a mochila, os binóculos, a chave, a pá, o pergaminho e o púcaro, já só lhe sobra a câmera... vamos ajudar o Wally a encontrá-los???)

A preservação destas estruturas fabris é extremamente importante para o estudo e compreensão da indústria cerâmica e de fundição em Portugal: uma parte importante da própria História da Arquitectura e da Escultura Portuguesa do século XIX e do início do século XX está nas Devezas.
Até há alguns anos atrás, injustamente relacionada com o fim da cerâmica artística e o início da cerâmica industrial, a Fábrica de Cerâmica das Devezas não foi mais do que a ponte entre as duas realidades, tendo tido o melhor das duas vertentes. Por essa razão, o complexo fabril das Devezas e as peças que produziu constituem o mais relevante legado cerâmico hoje existente em Portugal. Torna-se, pois, muito importante fazer a respectiva inventariação. Porém, um inventário não preenche todos os requisitos de preservação. É preciso ir mais além, através da recolha de peças que estejam em risco, tratamento conservativo, investigação, valorização, exposição e sua divulgação ao público. Só assim, este último tomará consciência do seu valor e, consequentemente da importância da sua preservação. Tudo isto seria mais exequível com a criação de um Museu Nacional das Artes Industriais no próprio complexo fabril das Devezas, cuja musealização está prevista desde meados da década de 1980, sem que nada tenha sido concretizado.
Não se faz ainda ideia do que existirá por debaixo das camadas de enchimento no quarteirão sul do complexo fabril nas Devezas (sobretudo), sendo provável que a sua escavação arqueológica sistemática venha a revelar o processo evolutivo da produção da fábrica, recuando até às peças mais antigas, podendo ser talvez encontradas peças interessantes e raras para estudo e para exposição. A própria escavação da zona das antigas barreiras poderá dar informações preciosas sobre a produção da fábrica e a qualidade dos materiais utilizados ao longo da história da mesma, através de depósitos diferenciados por camadas.
O princípio da precaução – tratando-se de um complexo fabril importantíssimo ainda não devidamente estudado, o qual virá certamente a revelar muitas surpresas – e o princípio da preservação de um património arquitectónico que é a coroa da arqueologia industrial em Vila Nova de Gaia, devem ser respeitados antes de se tomar qualquer decisão quanto ao destino a dar a todos estes edifícios fabris e, sobretudo ao quarteirão sul da fábrica, decisão essa que terá de ter sempre em conta o destino a dar a cada um deles e à própria envolvente dos mesmos.
O conturbado processo de classificação do complexo fabril das Devesas

O processo de classificação do complexo fabril das Devezas prolonga-se desde meados da década de 1980 - no IPPC, depois no IPPAR, e depois no IGESPAR. Mesmo assim, ainda não se vislumbra um fim definido. Foram muitos anos de algumas boas vontades, é certo, mas também, e sobretudo, muitos anos de abandono, delapidação, inércia, ignorância e burocracia, colocando em causa aquele que é um dos melhores exemplos de património industrial em Portugal.
O problemático processo de classificação da Fábrica de Cerâmica das Devezas iniciou-se de forma tímida, numa época em que era muito ténue a consciencialização da sociedade portuguesa para o valor do património arquitectónico, ainda para mais tratando-se de uma fábrica, em diminuta laboração na altura. Ao que se julga saber, a iniciativa coube ao então Vereador da Cultura da Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia que, em sessão de 9 de Janeiro de 1983, propôs a classificação, como de Interesse Público, dos painéis de azulejo sitos no muro do quarteirão sul da Fábrica das Devezas, no sentido da preservação dos mesmos. Tendo sido aprovada a sua classificação na autarquia, o mesmo vereador apresentou uma nova proposta em sessão de 17 de Setembro de 1984, desta vez relativamente ao edifício fabril (depreendendo-se que seja o núcleo a norte), recheio e antigo bairro dos operários da Fábrica das Devezas. A proposta previa igualmente a classificação do conjunto como de Interesse Público, tendo a vereação aprovado a sua classificação.
Em 20 de Outubro de 1984, "O Primeiro de Janeiro" noticiava que na antiga Fábrica de Cerâmica das Devezas iria situar-se um museu de cerâmica. Segundo o mesmo periódico, o vereador Barbosa da Costa havia proposto à Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia que nesse museu de cerâmica viesse a existir uma escola-oficina, de maneira a preservar a actividade da Fábrica de Cerâmica das Devezas. O museu contaria com o apoio científico da Escola Secundária Soares dos Reis e de outras instituições da indústria cerâmica. No museu, seriam incorporadas peças, moldes, matrizes e documentação das 17 fábricas cerâmicas que existiram em Gaia e também do Grande Porto.
Algumas partes da Fábrica de Cerâmica das Devezas estavam sem uso e outras estavam, já na época, ocupadas por uma oficina de automóveis, a qual ainda se mantêm. O então vereador da cultura afirmava - com razão - que muitos nem faziam ideia do "império cultural" que aquela fábrica criara, do qual o futuro museu apenas poderia dar "uma simples imagem".
Passadas algumas semanas sobre o artigo supramencionado, a imprensa dá uma nova notícia sobre a Fábrica de Cerâmica das Devezas, em 3 de Novembro de 1984. Nesta notícia, o então director da Companhia de Cerâmica das Devezas, Mendes de Carvalho, afirmava não entender o súbito interesse da Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia em recuperar a fábrica. Aliás, no ano anterior, a mesma autarquia alegadamente não se havia preocupado com o perigo de ruína de um muro que continha diversos padrões de azulejo e que, por isso, era considerado como um muro-mostruário.
Depois de alguns equívocos entre o Pelouro da Cultura e o director da Companhia de Cerâmica das Devezas, este último não terá ficado agradado com a atitude da autarquia de Gaia, sobretudo pelo facto de ter vindo a público com ideias e projectos, sem primeiro falar com a Direcção da Companhia. Estes mal-entendidos foram de tal forma fracturantes, que tiveram repercussões bastante negativas para a salvaguarda patrimonial da Fábrica de Cerâmica das Devezas.
Em 1985, houve uma visita ao muro-mostruário por parte de um especialista em azulejo, Rafael Salinas Calado, juntamente com o vereador Barbosa da Costa e com a então conservadora da Casa Museu Teixeira Lopes (Gaia). Concluiu-se ser "imprescindível" a classificação dos mesmos painéis de azulejo.
Passado cerca de um ano, em 27 de Junho de 1986, Joaquim Gonçalves Guimarães informava o IPPC (Instituto Português do Património Cultural) que o complexo fabril das Devezas era uma área complementar à do centro histórico de Vila Nova de Gaia, tendo dado o seu parecer favorável, enquanto responsável pelo Gabinete de História e Arqueologia da Câmara Municipal de Gaia, quanto à classificação do "conjunto único e exemplar como um todo" e não apenas o muro-mostruário. Juntamente a este ofício, anexava um breve relatório sobre o estado de conservação dos edifícios que considerava relevantes para a classificação: muro-mostruário; armazéns gerais, oficinas e escritório; palacete de António Almeida da Costa; asilo; o edifício azulejado da Rua Visconde das Devezas; a casa dos contramestres e o bairro dos operários.
Cerca de um mês mais tarde, em 24 de Julho, a Arquitecta Fátima Ferreira, do I.P.P.C., solicitava à Câmara Municipal de Gaia o envio de documentação fotográfica referente aos interiores dos edifícios e vistas gerais de todo o conjunto, para as mesmas acompanharem o processo de classificação que iria ser analisado pelo Conselho Consultivo do I.P.P.C.. Este pedido foi renovado em 11 de Agosto de 1986 pelo Presidente do I.P.P.C. – João Palma Ferreira. Porém, ao que parece, o pedido deveria ter sido feito ao Gabinete de História e Arqueologia da mesma Câmara e, talvez por essa razão, em 12 de Março de 1987 o I.P.P.C. ainda não tinha recebido qualquer documentação.
Em 18 de Abril de 1988, a Fábrica de Cerâmica das Devezas volta de novo à ribalta pelas mãos da imprensa: "«Cerâmica» das Devezas condenada à ruína?". A notícia começa por informar que, depois da fábrica fechar, várias empresas e um jardim de infância se tinham instalado em algumas partes da mesma, através de arrendamento. Relativamente à questão da sua musealização, a Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia, através do vereador Barbosa da Costa, dava conta que há alguns anos atrás havia contactado a Companhia de Cerâmica das Devezas para se fazer ali um "museu vivo da cerâmica". Porém, a Companhia tinha recusado, não tendo sido possível assinar o protocolo em que a autarquia se propunha a fazer ali as obras necessárias. Sendo assim, não era possível fazer o dito museu. Um dos membros da Direcção da Companhia de Cerâmica das Devesas, Teresa Mendes de Carvalho, rebatia essa versão dos factos, dizendo que a Câmara Municipal de Gaia nunca lhes havia proposto fazer ali um museu.
Passados cerca de seis anos desde o início do processo, em 21 de Setembro de 1989, um técnico do I.P.P.C. – Miguel de Araújo Leão – refere, em ofício, a necessidade de classificar e delimitar uma zona especial de protecção. Porém, em 31 de Outubro do mesmo ano, a Câmara Municipal de Gaia estava a apreciar a viabilidade de construção de um loteamento no local, o qual supõe-se ter relação com um outro já pretendido em 1983. Em 22 de Fevereiro de 1990, a imprensa noticiava: "Fábrica de Cerâmica das Devezas ainda espera ser museu". Esta notícia vinha a propósito de um seminário internacional sobre a produção cerâmica, o qual iria decorrer em Gaia entre Julho e Setembro de 1990 e do qual se esperava a clarificação de "muita coisa". No opúsculo do seminário já se propunha a criação do "museu nacional e internacional de cerâmica".
Ora, passados oito meses sobre esta notícia, é apresentado, em 20 de Outubro de 1990, na Assembleia da República, um projecto-lei visando a criação de um museu de cerâmica nas instalações da Fábrica das Devezas, através da vereadora Ilda Figueiredo, o qual não foi aprovado.
Em 20 de Dezembro de 1990, quando o Conselho Consultivo do I.P.P.C., em Lisboa, se pronunciou quanto à classificação do complexo fabril das Devezas, foi colocado em primeiro lugar - em termos de arquitectura industrial - um outro conjunto fabril cerâmico, o da Vista Alegre. Ainda assim, considerava-se já nessa altura que a Fábrica das Devezas mantinha igualmente todos os elementos constitutivos de origem e crescimento, sendo estes testemunhos físicos do que foi essa era industrial. O Conselho Consultivo do I.P.P.C. afirmava ainda que se tratava de um pedido de classificação pouco vulgar, dada a sua importância e o facto de ser uma área apetecível para lotear. Referia-se também a relevância de António Almeida da Costa e de José Joaquim Teixeira Lopes para a História e para a Arte portuguesas, através da sua actividade fabril, dos catálogos, da expansão que alcançaram, dos seus conhecimentos e reconhecimento nacional e internacional, mesmo não sendo necessário referir todos estes factos para a classificação do complexo fabril, que já valia por si só. Sendo assim, o Conselho Consultivo emitia um parecer favorável à classificação do complexo fabril das Devezas.
Aparentemente, mesmo com considerável atraso, o processo parecia estar no bom caminho. Contudo, em inícios de 1991, o I.P.P.C. chama a atenção para a necessidade de ouvir a opinião dos proprietários, de acordo com a antiga Lei do Património 13/85, que - note-se - nunca chegou a ser regulamentada.
Entretanto, em 27 de Fevereiro de 1991, a Arquitecta Isabel Sereno, técnica do I.P.P.C. no Porto, requer a inclusão no processo de classificação do antigo depósito da Fábrica de Cerâmica das Devezas no Porto e do respectivo tecto do salão de exposições.
Com a extinção do I.P.P.C. e a criação do I.P.P.A.R, dá-se um hiato de oito anos em que praticamente nada acontece de positivo para o processo de classificação da Fábrica de Cerâmica das Devezas, acentuando-se a degradação do complexo fabril.
A 1 de Julho de 1999, publicou-se o edital n.º 10/99 de 12 de Maio de 1999, da Câmara Municipal do Porto, no qual se tornava público que, por despacho do Vice-Presidente do I.P.P.A.R., datado de 14 de Abril de 1999, havia sido confirmado o despacho de 15 de Janeiro de 1991, respeitante à abertura do processo de instrução relativo à eventual classificação do conjunto das Devezas, incluindo-se o depósito no Porto.
Entretanto, desde há vários anos que uma empresa imobiliária, constituída para o efeito, pretendia lotear o quarteirão sul da antiga Fábrica de Cerâmica das Devezas. Ora, de acordo com a legislação portuguesa em vigor, seria necessário proceder a sondagens arqueológicas em todos os locais em vias de classificação, as quais teriam de ser custeadas pelo promotor. Parte da lei foi parcialmente cumprida: em finais de 2002 iniciaram-se sondagens preliminares, tendo-se procedido à limpeza do terreno.
Porém, intervenções arqueológicas numa amplitude tão grande como a do quarteirão sul das Devezas e num complexo tão importante, impunham um sólido estudo prévio. Este facto não se verificou e não mereceu a devida atenção, quer por parte dos organismos públicos que tutelam este Património, quer por parte da empresa de Arqueologia encarregada das sondagens.
 
Se tal preocupação tivesse existido, as primeiras sondagens arqueológicas realizadas no quarteirão sul da Fábrica de Cerâmica das Devezas teriam sido mais profícuas e convenientemente direccionadas para os locais que potencialmente dariam resultados mais relevantes, numa primeira fase. Refira-se que o forno de sistema francês, construído em granito e em tijolo maciço, e a plataforma granítica de assentamento da oficina de serralharia e fundição foram "descobertos" por mero acaso, quando estavam claramente referenciados em plantas antigas que encontrámos no decorrer da nossa investigação. Evitar-se-ia facilmente o facto da retro-escavadora ter provocado o aluimento de parte deste forno, devido ao peso que a mesma exerceu.
Mesmo assim, estas sondagens arqueológicas contribuíram para o conhecimento de novos dados que não estavam incluídos na documentação escrita por nós consultada até à data. Além disso, as sondagens vieram esclarecer algumas questões inicialmente duvidosas e reforçar ainda mais a importância histórica, artística e industrial deste complexo fabril. Pôde-se confirmar que o núcleo sul das Devezas incluía ainda estruturas arquitectónicas que eram (e são) únicas no país, sobretudo pela sua articulação e quantidade e num espaço bem delimitado.
Apesar de terem sido realizadas sondagens arqueológicas, o risco de manipulação dos resultados e a consequente aprovação do projecto imobiliário sobre bases falaciosas, levou a que um grupo de pessoas se tenha movimentado de modo a tentar salvar da destruição o quarteirão sul do complexo fabril. Num manifesto, solicitava-se a prossecução dos estudos arqueológicos, de modo a recuperar o máximo que fosse possível de espólio e a fundamentar melhor um processo de reabilitação urbanística do espaço.
 
Acompanhando o referido manifesto, ia um abaixo-assinado realizado entre Fevereiro e Março de 2003, subscrito por um número considerável de investigadores, arqueólogos, historiadores, museólogos e gente da Cultura em geral. Nos meses que se seguiram, foram igualmente publicados alguns artigos em jornais nacionais sobre o valor patrimonial da Fábrica das Devezas e a urgência da sua salvaguarda.
A par destas iniciativas, decorreram várias visitas ao complexo fabril, nomeadamente ao núcleo norte e sul, onde estiveram presentes representantes do I.P.P.A.R., do I.P.A. (Instituto Português de Arqueologia), da Câmara Municipal de Gaia, investigadores, arqueólogos, etc.. Foi, inclusivamente, elaborado um parecer sobre o valor patrimonial da fábrica para acompanhar uma proposta de classificação como Monumento Nacional e um pedido de inventariação, solicitado por parte da Prof. Doutora Lúcia Rosas (enquanto coordenadora do Seminário de Património e Restauro do Mestrado em História da Arte em Portugal e orientadora da tese de Mestrado que foi elaborada sobre a fábrica, entre 2002 e 2003). Foi igualmente enviado um ofício, com a data de 12 de Março de 2003, por parte do Departamento de Ciências e Técnicas do Património da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, manifestando a sua posição em favor da continuação das sondagens arqueológicas e chamando a atenção para o facto de qualquer decisão relativa ao destino a dar ao complexo fabril das Devezas ter de ser devidamente fundamentada, havendo sempre em vista a sua preservação e musealização, dado o seu elevadíssimo valor patrimonial.
O projecto de loteamento e urbanização para o quarteirão sul foi elaborado apenas com conhecimento das estruturas visíveis por entre o então existente matagal, ou seja, antes das sondagens arqueológicas. Após as mesmas, o projecto veio a revelar-se incongruente e obsoleto. Por aquilo que viemos a conhecer do projecto, apesar de se notar uma preocupação com a manutenção de certos alinhamentos e com a interdição de acesso automóvel a alguns espaços mais sensíveis no interior do quarteirão, a verdade é que o mesmo enfermava de alguns pressupostos que faziam dele um projecto em nada apropriado para aquele local, pois partia do princípio que só existe valor patrimonial nas estruturas arquitectónicas ainda de pé, quando o subsolo de todo o complexo fabril possui estruturas muito interessantes (cisternas, túneis, fornos) que seriam, assim, destruídas e sem qualquer tipo de estudo. Aquando das sondagens de 2002, no piso correspondente à oficina de fundição e serralharia ainda pudemos vislumbrar claros vestígios de assentamento de máquinas.
O projecto de urbanização que se encontrava em apreciação no ano de 2004, não apresentava critérios objectivos para a manutenção de determinadas estruturas arquitectónicas e a demolição de outras que ainda se encontram de pé. Ora, não seria sensato que um projecto para uma zona tão sensível, classificada de interesse público pela Câmara Municipal de Gaia e com processo de classificação pendente no IPPAR (posteriormente, IGESPAR), fosse quase discricionário, não incluindo o parecer externo de reconhecidos especialistas em arqueologia industrial e/ou em história da arte.
O projecto de urbanização que se encontrava em apreciação no ano de 2004, não pretendia, pois, valorizar aquela zona para o bem comum, mas simplesmente corresponder ao objectivo de lucro por parte do promotor, que viria a ser o único beneficiado de um património que pertence a todos. Para além de destruir um importante elemento do património arquitectónico do concelho e do país, amputava a leitura de todo o complexo fabril, retirando valor às estruturas arquitectónicas confinantes, sobretudo ao palacete do fundador, às casas dos operários e também ao quarteirão norte da fábrica.
 
Ora, a concretização desse projecto de urbanização para o quarteirão sul implicaria destruir valências que dariam ao futuro museu todo o sentido (como o túnel de ligação entre os dois quarteirões – que o projecto de urbanização ignorava, como ignorava outras estruturas). Em suma, tendo em conta a localização do complexo fabril das Devezas e o seu potencial em termos de variedade e de importância das estruturas arquitectónicas construídas, o projecto de urbanização previsto para o quarteirão sul era fraco nos pressupostos e equivocado nas soluções apontadas, constituindo, por arrastamento, quase um plano de destruição patrimonial gratuita. O referido projecto em apreciação no ano de 2004 servia um interesse privado concreto e quase nada traria de proveitoso para o interesse público, quer em termos de reabilitação urbana da zona, quer em termos da salvaguarda e valorização do antigo complexo fabril.
De facto, não é possível entender o núcleo sul como elemento isolado. Há que realçar o extremo interesse do antigo complexo fabril como um todo, pois contém - articuladamente - vários antigos equipamentos fabris. Além disso, realçamos também a posição privilegiada do referido complexo num espaço confinante com o centro histórico, junto à estação de caminho de ferro, no eixo viário de acesso à actual Câmara Municipal, passando pela Casa Museu Teixeira Lopes e pelo arquivo histórico. Encontra-se, pois, numa situação bastante privilegiada e seria conveniente destinar a um fim nobre e compatível todas as estruturas arquitectónicas deste complexo que não venham eventualmente a funcionar como museu no sentido tradicional.
A Fábrica de Cerâmica das Devezas foi a mãe de todas as fábricas de cerâmica modernas no norte e centro de Portugal. Ora, se Gaia é considerada terra da cerâmica (aliás, no período áureo da Fábrica de Cerâmica das Devezas, Gaia era o maior centro produtor de cerâmica em Portugal), faz todo o sentido aproveitar o potencial desta fábrica, realçando a própria identidade de uma região e de um concelho, assim como a identidade do país, pois as peças que a Fábrica de Cerâmica das Devezas produziu para decoração arquitectónica tornaram a nossa arquitectura identitária e distinta da de outros países. Note-se que a Fábrica de Cerâmica de Jerónimo Pereira Campos & Filhos, em Aveiro, mesmo sendo cópia em menor escala, com menos história e com menor qualidade que a Fábrica de Cerâmica das Devezas, foi recuperada pela respectiva autarquia para centro de congressos e novo centro cívico da cidade.
 
No caso da Empresa Industrial de Ermesinde, mesmo estando em ruínas, foi ali instalado um fórum cultural, aproveitando-se a antiga fábrica de cerâmica para galeria de arte, desafogada por um parque ajardinado. Uma outra fábrica que corresponde à identidade da cidade e onde foram instalados os novos paços do concelho, é a Fábrica de Lanifícios de Portalegre. Até uma pequena fábrica de cerâmica junto à estação de Oliveira do Bairro teve já projecto para um museu da olaria e do grés, com a publicação de um livro sobre o assunto - ao passo que a Câmara de Gaia nunca publicou ainda qualquer livro sobre a história e o valor da Fábrica de Cerâmica das Devezas, que foi a mais importante que o país teve, na sua área de produção.
Ora se há vários anos reabilitam-se e musealizam-se parcialmente algumas fábricas de cerâmica que foram "cópias" do modelo da Fábrica de Cerâmica das Devezas, e que nem sequer possuíam as estruturas que as Devezas ainda mantêm; se outros assim o fizeram com muito menos, seria um erro gravíssimo se o modelo – a Fábrica de Cerâmica das Devezas – não fosse aproveitado e preservado de uma forma ainda mais consistente e assumida.
O conjunto edificado do complexo fabril das Devezas proposto para classificação como Monumento Nacional em 2003, integra todos os bens imóveis ainda existentes em Gaia, no Porto e na Pampilhosa. Após alguns ofícios, pareceres, telefonemas e artigos na imprensa, recebemos um ofício do I.P.P.A.R., datado de 20 de Agosto de 2003, no qual éramos informados que o mesmo instituto estava a desenvolver "as diligências de natureza processual inerentes à «fase de abertura e audição do processo», após o que prosseguirá para a «fase de fundamentação técnica»". O teor deste oficio levou-nos a questionar se algo terá realmente evoluído (para além da constante e lenta delapidação do complexo fabril a classificar) ao longo dos vários anos que mediaram entre a (muito tardia) abertura oficial do processo e a actual situação de impasse. Aliás, um erro processual na definição da zona de delimitação foi apenas corrigido em 25 de Setembro de 2003, quando "O Comércio de Gaia" publicou um edital da Câmara Municipal de Gaia datado de 5 de Setembro de 2003, anexando uma planta com a localização dos bens imóveis, a qual corrigia e completava o edital datado de 19 de Julho de 1999, publicado no mesmo periódico em 29 de Julho de 1999.
Muito como consequência das iniciativas anteriormente mencionadas, foram alterados alguns aspectos do projecto imobiliário em apreciação nessa altura, por imposição do I.P.P.A.R., tendo sido prevista a continuação das sondagens arqueológicas.
Porém, a partir dessa altura, gerou-se quase um impasse. Por razões de discrição, dado que o processo é bastante sensível, não iremos entrar em detalhes. Certo é que o antigo complexo fabril continua votado ao abandono, estando o quarteirão sul em avançada ruína e deixado novamente ao medrar das silvas. No quarteirão norte, parte dos telhados também começou já a abater.
Conclusão

O complexo fabril das Devezas, como projecto museológico, é interessante sobretudo pelas estruturas e pela sua articulação entre si. Em termos de espólio, dada a sua vastidão, importância e interesse, julgamos que pode não ser suficiente apenas a utilização do quarteirão norte para a sua exposição, para as reservas, para acolhimento de visitantes e serviços de conservação, investigação e administração de um futuro museu que equivalha à importância do complexo. Assim, as estruturas preservadas do quarteirão sul também poderiam, em parte, albergar esses serviços e, noutra parte, servir para equipamento público compatível com o museu.
 
Um jardim urbano seria a opção mais clássica e, para alguns, seria mesmo a ideal. Porém, para além de ser dispendiosa – uma vez que traz pouco retorno a quem investe, é também passível de fracasso em termos urbanísticos, se a envolvente continuar com a mesma função residencial pouco qualificada que hoje tem. Assim, esta opção de converter o quarteirão sul parcialmente em jardim, deixando intactas as estruturas arquitectónicas da antiga fábrica para usufruto por parte dos visitantes do museu ou para usufruto de não visitantes (como parque público), teria de ser complementada com uma requalificação das áreas confinantes a sul e sudoeste (sobretudo), de modo a que este parque não se convertesse num espaço vazio e potencialmente inseguro. Mesmo que este parque fosse fechado, aberto apenas durante o dia, seria necessário atrair valências para o local, de modo a que este tivesse uma utilização regular e isso impedisse o seu abandono e vandalização.
Esta opção pelo museu + jardim pode ser também algo redutora. De facto, a ideia que se lançou, na década de 1980, de um museu da cerâmica para aquele local, deve ser alargada para um Museu Nacional das Artes Industriais, pois foi a produção simultânea de várias formas artísticas que impulsionou a Fábrica das Devezas para o sucesso. Aliás, António Almeida da Costa escolheu um emblema alusivo à união entre a Arte e a Indústria, para representar o seu complexo fabril, quer nas fachadas de vários edifícios fabris (Devezas, Porto e Pampilhosa), quer no catálogo de 1910.
 
Abrindo-se o leque temático do projecto museológico, seria possível obter mais espólio e mais apoios, reduzindo custos e viabilizando ainda mais a criação do museu. Por outro lado, não existindo ainda um museu das artes industriais em Portugal, este projecto museológico nas Devezas passaria a ser original e único, ultrapassando facilmente o carácter regional, para se tornar num museu nacional e internacional, no que certamente iria ainda diminuir mais o ónus da sua manutenção.
Uma outra hipótese também interessante para o futuro museu nacional das artes industriais, que minoraria em muito os custos, dando também uma mais-valia ao futuro espaço museológico, seria a elaboração de um protocolo com alguma oficina de cerâmica, das várias que existem em Gaia, para se instalar no local e fazer uso de várias partes do complexo fabril, de modo a que os visitantes pudessem apreciar aspectos de laboração (um pouco como sucede com o museu da Fábrica Vista Alegre). Com a cada vez maior consciencialização da importância do azulejo nas fachadas, por exemplo, o mercado de produção de azulejo de substituição está a sofrer um grande aumento, que será certamente ainda mais sentido nos próximos anos. As Devezas poderiam dedicar-se a esse nicho de mercado, cumprindo uma dupla função de museu e de indústria activa.
Um pouco na continuação daquilo que foi a Fábrica de Cerâmica das Devezas, parte do espaço que este complexo ocupa, poderia também albergar uma instituição de carácter educativo na área da cerâmica e do ferro.
 
Estar-se-ia pois, a fomentar o desenvolvimento de capacidades com base no melhor exemplo de produção nas artes industriais, uma vez que o espólio da própria fábrica não estaria apenas arrumado numa prateleira mas serviria, certamente, de inspiração e modelo.
Em suma, o quarteirão sul da antiga Fábrica de Cerâmica das Devezas poderá servir para muitas funções, desde que sejam respeitados os vários pressupostos já enunciados, pressupostos esses que não são tão limitadores como podem parecer. O complexo fabril das Devezas merece bem melhor do que o projecto que estava em apreciação em 2004 para o quarteirão sul.
 
Há que saber aproveitar o enorme potencial ali existente. Assim, antes de tudo, é necessário não deixar danificar ainda mais o que lá existe, conhecer melhor o que está escondido debaixo do solo e encontrar uma solução integrada que salvaguarde este Património para os vindouros, aliando o útil ao prático e dando uma nova utilização àquilo que hoje são edifícios abandonados, sem descaracterizar as estruturas. Tudo isso é hoje possível, com um pouco de engenho e boa vontade.
Por último, refira-se que o que resta das restantes antigas fábricas de cerâmica em Gaia está em situação semelhante, senão mesmo pior, o que pode ajudar a perceber até que ponto a falta de visão e de vontade política de sucessivos executivos autárquicos é factor preponderante no arrastar dos processos de classificação, salvaguarda e valorização do Património fabril. Aliás, tendo em conta tudo o que já foi relatado, a Câmara Municipal de Gaia nem sequer deveria ter permitido a aprovação - ainda que condicionada - de um loteamento para uma área em vias de classificação (quarteirão sul da Fábrica das Devezas), a qual tinha sido já classificada em parte pela própria autarquia, e que necessitava, antes de mais, de um prévio plano estratégico para a toda a zona.
Nem todas as antigas fábricas de cerâmica podem ou devem ser musealizadas. Mas isso não significa que não devam ser preservadas algumas estruturas e estudadas em termos arqueológicos, procedendo-se à recolha do espólio - que deveria integrar um futuro museu na antiga Fábrica de Cerâmica das Devezas.
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Um grande OBRIGADO ao Francisco Queiroz, à Ana Margarida Portela, ao José João Roseira e ao Joaquim.

8 comentários:

  1. Excelente.
    Sou arqueólogo com gosto pela fotografia.
    Gostava de apresentar-te este grupo: https://www.facebook.com/groups/invasaofotografica/
    Estivemos dentro da fábrica no dia 7 de Setembro e foi uma experiência brutal.
    Costumamos "In_Va_DIR" espaços em ruinas procurando retratar do ponto de vista e a formação de cada um a história do local.
    Poderíamos trocar ideias sobre o assunto.
    Um abraço
    Sérgio Pereira

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  2. Muito bom! também gosto muito de fotografar ruinas,temho me aventurado em algumas sózinho,mas confesso que é perigoso,mas la vou conseguindo algumas fotos,parabéns.

    um abraço
    joão gomes

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  3. Muito boa "reportagem"!
    Conheço bem as "Devezas":já fui quase dono daquilo, ainda antes do 25.
    Tudo se arrasta entre câmaras, ip. ig.interesses vários.
    Mas o mal maior é a paralisia de quem tem o poder de não fazer e não deixar fazer.
    Se querem que a comunidade beneficie de algo com valor, expropriem e façam!
    Não andem eternidades a jogar com o património dos outros para justificar a sua própria existência.
    A carapuça a quem lhe sirva.
    Se não tiverem as medidas, talvez eu possa fornecer-lhas.
    Mais uma vez os meus parabéns pelo trabalho que vem desenvolvendo.
    Para mim, que desse trabalho usofruo, é frustrante ver tanto por fazer...e tantos sentados em cima dos nossos impostos.

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  4. Boa noite, acho que a cauda do Woof aparece na foto nr 66, por detrás do forno lado direito.
    (venha lá essa foto que é uma honra)
    jorge

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  5. Boa noite, esta sua reportagem foi, no mínimo, providencial, já que ainda em 2013, parte derrocou e por "perigo de derrocada" a Protecção civil de Vila Nova de Gaia demoliu os pavilhões centrais.

    Como pode ver aqui.
    http://portocanal.sapo.pt/noticia/9798/

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  6. Estou fascinada com o Ruin'arte!
    E esta reportagem é realmente marcante em diversos sentidos: apresenta-nos um esboço do quão penosos podem ser os processos de classificação patrimonial neste país; demonstra claramente o valor histórico e artístico da antiga fábrica; e foca que não basta reabilitar, não basta fazer museus...
    Por mais exímio que seja o processo de reabilitação, este tornar-se-á infrutífero na ausência de um programa funcional adequado às características do espaço, da sua envolvente urbana e das pessoas que o viverão. Focou ainda a viabilidade económica e de conservação inerentes ao novo uso, factores-chave e sistematicamente ignorados na (má)reabilitação em Portugal.
    (Sendo apaixonada pela matéria, apoio inteiramente a ideia de uma faculdade de reabilitação arquitectónica e urbana, nesta fábrica ou algures em Portugal.)
    Aclamo este blog e todo o trabalho desenvolvido pelo seu autor!

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  7. Caro amigo,

    Gostei muito do artigo, contudo apenas uma ou duas correcção. Uma coisa é uma sondagem arqueológica outra coisa é uma escavação área. Em segundo, a sondagem arqueológica seguiu os transmites definidos e mandados pela tutela. O arqueólogo não faz nem implanta as valas de sondagem onde lhe apetece.

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