A Real Fábrica de Atanados é, um dos mais desgraçados edifícios que já visitei... é também um dos mais magníficos!
Os seus 217 anos de ininterrupta laboração, glorificam-na como um
templo de trabalho e dedicação, que contrastando violentamente com o
desleixo a que foi votada, torna-se em mais um inadmissível paradoxo.
A sua curiosa e majestosa traça, resulta da projecção de uma quinta,
de um solar e de uma fábrica, combinando em perfeita simbiose
arquitectónica estas suas três vertentes.
Não é só a sua longa história que está em risco, mas também a de
todo o concelho de Vila Franca de Xira. A sua importância como símbolo
industrial, quase se sobrepõe à sua nobre e austera imponência.
Este complexo arquitectónico, supõe-se pela sua toponímia, ter
nascido da adaptação de uma velha casa de lavoura que ficou na altura
conhecida por "Fábrica da Quinta", tendo sucessivamente sido remodelada
em conformidade com as funções que desempenhou.
Na sua ampliação ao longo dos tempos, testemunhada pelos estilos que
apresenta, pode-se verificar os dois momentos mais marcantes na sua
arquitectura contrastando com a exuberância do período joanino, com a
austeridade do período pombalino, além de reminiscências de classicismo
no que resta do jardim, transformando este espaço numa barra cronológica
de todo o século XVIII.
Nas duas últimas décadas, foi vítima além do abandono e suas
erosivas consequências, de uma completa espoliação de todo o seu
património, crimes perpetrados por simples vândalos e por quadrilhas
internacionais, tendo chegado a pedra de armas a ser recuperada pela PJ,
em solo espanhol.
Foi também vitimada por um devastador incêndio, e por fim, foi alvo
de uma "reabilitaxão", que embargou o projecto adiando-o para
melhores dias... hoje, planos lhe não faltam, faltam é verbas e
iniciativa!
O seu passado como indústria, remonta ao longínquo ano de 1729, quando
por iniciativa de João Mendes de Faria Barbosa Fagundes, foi edificada,
tendo merecido por isso, em 1731 uma carta de armas onde figuravam os
brasões dos seus apelidos, tornando-se Senhor de uma Fábrica de Sola.
Reinava então D. João V, que na sua magnânima pessoa deu o alvará a este
grande empreendimento, atribuindo-lhe o Real titulo de excelência. Uma
verdadeira distinção que além de privilégios, também lhe dava
obrigações: a qualidade e excelência dos seus produtos teriam de estar à
altura desse tão grande estatuto.
O local onde a fábrica se ergueu, além de ter um perfeito feng shui,
permitiu-lhe subsistir em regime de quase total auto suficiência. A
quinta era por si fornecedora de lixo de pombo, azeite, lenha e de
cascas de carvalho, que também poderiam sem esforço ser igualmente
procuradas nas quintas vizinhas, assegurando um reforçado fornecimento e
garantindo uma produção facilitada e sem interrupções.
A Ribeira de Povos, que graciosamente atravessa a propriedade,
foi um fiel fornecedor de água que sustentava esta empresa em todas as
suas necessidades.
Desde o regadio das produções agrícolas, ao tratamento e
processamento das matérias aqui tratadas, a utilização do precioso
líquido eram uma constante em todo este complexo.
A sua localização pela proximidade ao rio Tejo, em muito
facilitava a distribuição e transporte de todas as mercadorias que dali
vinham e, que para ali iam.
Embora a manufactura de curtumes fosse já uma antiga tradição, a sua
produção industrial estava uma fase incipiente, por isso, não havia
em Portugal mão de obra especializada que garantisse os melhores níveis
de produção.
Foram para esse efeito recrutados técnicos vindos de Inglaterra
onde esta indústria já se encontrava em avançada laboração. Do Ribatejo,
vieram oficiais recrutados segundo a tradição da manufactura orgânica
completando a mão-de-obra para o seu pleno funcionamento.
Esta fábrica manteve-se ao longo dos tempos fiel à tradição. Os avanços
tecnológicos mais significativos da industrialização dos curtumes não
foram adoptados por esta empresa, por deles não necessitar. Como a força
motriz de que dependia e as matérias-primas, uma vez que eram
generosamente aqui obtidos, nunca houve a necessidade de optar por
novos engenhos nem tratamentos químicos das outras indústrias de
vanguarda.
Embora esta indústria fosse uma das mais poluentes, a REAL FÁBRICA
DE ATANADOS DA VILA DE POVOS, pela
tecnologia utilizada, era sem dúvida "amiga do ambiente" tornando-se um excelente exemplo de gestão,
trabalho e sustentação.
Pela cronologia desta fábrica podemos avaliar a importância e
contributo que deu a toda a Nação, pelo que aqui apelo aos
responsáveis pelo património edificado que façam a devida justiça e lhe
dêem a merecida atenção.
1728 Gaspar Caldas Barboza solicita autorização para a criação de uma manufactura de curtumes, sabendo-se que se trata
do pedido que irá dar origem à Fábrica de Povos.
1729 (15 de Outubro) Alvará de fundação da Fábrica de Atanados de Povos, cujo contratador era João Mendes de Faria
Barbosa e Fagundes, para o fabrico e aperfeiçoamento de atanados e camurças. Condições para a laboração. Custo da
montagem da manufactura 70 mil cruzados e 48 mil de investimento em couros.
1730 (17 de Janeiro) — É passada Carta de Nobreza a João Mendes de Faria.
(25 de Setembro) — Consulta do Concelho da Fazenda sobre a manufactura de Povos.
1731 (5 de Julho) A Fábrica de Povos recebeu o privilégio de isenção alfandegária para os seus produtos “assim os atanados
como toda a mais courama de qualquer qualidade que sejam nela fabricados”.
1731 (9 de Agosto) 1.0 Privilégio de fabrico, com uso de marca e armas nos curtumes. O Estado exige que a fábrica fique em
última perfeição,
1732 (17 de Setembro) A decisão de 1731, respeitante ao privilégio de isenção alfandegária para os atanados e camurças de
Povos é tornada pública.
A “A cinta da F Ah rica”: A Real FAA rica de Atar ado de jaia ler dea d e Faria e auceaaarn__j~j
1736 Novas obras na Quinta da Fábrica por motivo de ampliação da laboração, obras que deveriam ter custado mais de 20 mil cruzados. Petição de João Mendes de Faria a D. João V. Os couros para a Fábrica vinham do Campo do Curral, em Lisboa e foram obrigados a pagar 8.000 réis à Alfandega. (1 de Agosto) Casamento da filha menor e herdeira, Isabel Maria de Faria Barbosa Fagundes com Romão José da Costa Guião.
1737 É autorizada nova manufactura de curtumes, para fabricar marroquins e mais couros, na Quinta das Murtas, cuja direcção estava entregue a Pedro Pereira & Francisco Pereira e Manuel Martins da Costa. Insistência de João Mendes de Faria. Queixa contra o rigor dos funcionários da Alfândega.
1738 (I5 de Setembro) Resolução que permite a retribuição dos dinheiros embargados na Alfândega ao contratador de couros.
1738 (24 de Setembro) Parecer do Senado da Câmara sobre a Fábrica.
1739 (13 de Julho) Outro parecer do Senado da Câmara.
1740 Diogo Mandim, mestre da manufactura de Atanados, sai da Fábrica de Povos.
1741 (10 de Agosto) João Mendes de Faria requer renovação dos privilégios concedidos em 1729, considerando Povos uma das melhores fábricas da Europa. Início do contencioso com o fabricante inglês Henrique Tompsen, fundador da Fábrica de Curtumes de Gaeiras (Óbidos).
Início do 2º Privilégio de João Mendes de Faria.
1743 (1 de Janeiro) 1.” Privilégio à Fábrica da Quinta das Murtas.
Face ao privilégio anterior João Mendes Faria pretende a reunião das duas concessões de curtumes do país (Povos e Quinta das Murtas) para melhor evitarem a concorréncia e dominar os segredos tintureiros.
1745 Num documento oficial a manufactura de Povos e’ int~ltulada REAL FÁBRICA DE ATANADOS DA VILA DE POVOS.
1746(13 de Outubro) Petição do Juiz do Povo e da Casa dos Vinte e Quatro para que não se extraíssem árvores de sobro, carvalho ou azinho da outra Banda do Tejo, que eram amplamente produzidos pela Fábrica de Povos, pois eram necessários para produzir carvão de lenha para o aquecimento de Lisboa.
1747 Com o fim do privilégio de Pedro Pereira da Quinta das Murtas (a respeito dos métodos tintureiros), João Mendes Faria e o responsável por aquela manufactura resolveram constituir uma sociedade para a exploração da manufactura de Povos, unindo os esforços comuns, colaborando o primeiro com os segredos tintureiros e o segundo com a organização e estabelecimento manufactureiro.
1751 Fim do 2.° privilégio deJoão Mendes Faria.
1756 De acordo com o Dicionário Geográfico fabricavam-se 15.000 couros em média.
1772-1774 A Fábrica pertence a Romão José da Costa Romão, genro de João Mendes de Faria.
1774 A manufactura aparece como pertencente ao filho de João Mendes de Faria, José Pedro de Faria, José Pedro de Faria
Barbosa Fagundes, que se associara a Vicente Pedrossen da Silva.
1788 A Fábrica de Povos está nas mãos de Calvette & Sócios.
1789-1790 Depois de uns anos em que esteve parada inicia-se a laboração a fim de gosar de um indulto régio. Mercê de isenção dos direitos de sisa pela compra da courama e da lavagem por tempo de 10 anos a 12.000 coiros por ano (que era o que curtia), o que equivale a 50% da matança anual do pais.
1792 A Fábrica de Povos adiantou à Sociedade de Marchantes de Carnes Verdes 12.000 cruzados, pelos coiros que lhe remetia, pelo que fez ajuste particular de os receber por menos de 30 réis a arroba.
1797 O cais de Povos ainda se encontrava operacional.
1802 Relatório do Juiz de Fora, corregedor interino de Vila Franca de Xira sobre as causas da decadência da Fábrica de Povos, o cais de pedra do porto fluvial encontra-se assoreado.
1803 João José de Faria Mascarenhas Mello, neto do fundador, é o Senhor da Fábrica de Povos.
1810 (Outubro) a 1811 (Março) A invasão de Massena faz extraviar a alvará primitivo da manufactura de Povos. Perturbações na manufactura com a migração da população trabalhadora para Lisboa.
1811(25 de Outubro) Sebastião José Teixeira, Juiz de Fora de Castanheira e de Povos refere que EX Maria da Piedade de La Cerda, como tutora e administradora de seus filhos encontra-se a restabelecer a manufactura de curtumes de Povos, decadente desde a invasão francesa.
1815 (5 de Junho) Início da polémica com exportadores nacionais de casca de sobro e carvalho (Prego & C.’), na qual intervém a proprietária da Fábrica de Povos, D. Maria da Piedade La Cerda.
1818 Reanimação da indústria de curtumes incluindo a Fábrica de Povos,
1819 José Acúrsio das Neves refere a problemática nacional da isenção de sisa, que fora uma nova mercê do Estado
Absoluto à Fábrica de Povos e que as outras manufacturas reivindicam.
1827 (1 de Fevereiro) A Coroa não defere a exportação de 400 arrobas de raspas de coura de boi da Fábrica de Povos.
1829 (21 de Maio) Ordens reais para não se exportarem raspas de couros de boi para dar cumprimento ao Alvará de 11 de Fevereiro de 1773, de João Baptista Locatelli, fabricante de grude.
1829(6 de Junho) A proprietária da Fábrica de Povos exporta para os portos de Itália e de Espanha 156 arrobas de raspas de couros de boi, faltando-lhe exportar ainda outras 844, contra a vontade da Coroa que havia proibido a exportação destes sub-produtos, para atender aos fabricantes nacionais de grude.
1830 Referência a um António José Ferreira fabricante de atanados na Fábrica de Povos.
1845 (Setembro) A fábrica estava nas mãos da viúva de um descendente dos La Cerda, D. Maria da Piedade Faria de La Cerda.
1845 (7 de Novembro) — Resposta oficial ao Inquérito das Fábricas deste ano.
1856 A Fábrica restabelecera-se e corria pela firma José Pedro de Faria La Cerda & Cia.
1893 Tudo faz pressupor que a “casa da fábrica da sola” ainda laborasse, embora intermitentemente.
1905 (cerca de) José Miguel da Silva Santos, natural da Goucharia, estabelece-se na Quinta da Fábrica para a pôr a laborar.
1935 (cerca de) Ampliação da Fábrica de Curtumes.
1946 (cerca de) A Fábrica de Curtumes de Povos deixa de laborar.
1996 A firma OBRISANTOS pretende construir uma unidade hoteleira na Quinta da Fábrica.
Fonte : A “Quinta da Fábrica”: A Real Fábrica de Atanados de João Mendes
de Faria e sucessores - Jorge Custódio.
Parabéns!
ResponderEliminarUma vez mais, muito mais do que simples fotografias...
Se fosse uma daquelas fabricas a viver com subsídios, a "comer" milhões ao País, teria talvez melhor sorte,como foi autosuficiente e um exemplo, fica abandonada. Mais uma vez a história se vai apagando.Nem nesta perspectiva, o património é preservado.
ResponderEliminarUm desastre que assola Portugal nos últimos tempos, embora, aparentemente, nos estejamos a tornar num país mais culto.....
Como toda a "Quinta Nobre" que se preze, esta Fábrica também tinha a sua Capela privativa, de que restará ainda o local, era dedicada a Nossa Senhora do Carmo da Lapa e foi edificada por João Mendes de Faria Barbosa e Fagundes com licença do Patriarca de Lisboa, dada em 19 de Julho de 1736, mas só foi aberta ao culto cinco anos mais tarde, dado que a Provisão de Licença para ser benzida e nela se dizer missa data de 23 de Janeiro de 1741.
Eliminarfantástica obra!! parabéns!
ResponderEliminarOlhando para estas fotos, causa-me uma certa nostalgia, é uma dor enorme ao ver o estado em que a quinta se encontra.
ResponderEliminarVivi na quinta da fábrica entre 1975-1980, diverti-me imenso, deste as histórias contadas pela dona da quinta, dos livros ilustrados com imagens desdobráveis.
No verão a visita dos jovens enchia a quinta de vida.
A quinta era repleta de árvores de frutos em especial os maravilhosos diospiros
Imagens que me ficaram na memória com muita saudade, nostalgia e dor por ver o estado em que encontra.
O seu trabalho permitiu-me "entrar" num espaço mítico. Deu-me a conhecer pedaços da história da minha família materna, e por isso muito lhe estou grata!
ResponderEliminarQue nostalgia, passei grandes férias de adolescente nos finais dos anos 80 nessa quinta, guardo das melhores recordações dela e toda a sua envolvência
ResponderEliminar